Aos costumes disse… nada. Os nossos treinadores
Texto comentado por João Frada
[Começaria por felicitar o autor deste texto, o qual nos atrevemos a comentar. Fazemos nossas muitas das suas palavras sábias, sentidas e contundentes. Outras, não tanto. Todas elas, porém, nos serviram de pontos de reflexão, descobrindo nessa análise o quanto estamos ideologicamente próximos em muitas posições e críticas tecidas.]
“Cabe-me, antes do mais, a honra de agradecer o cantinho de escrita que me reservaram neste nóvel blogue. O convite simpático, sorridente e alegre, da administração. A empatia sempre sentida e sempre compartilhada. Foram-me buscar ao canto escuro onde me tinha retirado há muito tempo, desistindo da oratória em local público. Convenceram-me a cá vir. Vi. Gostei. Fiquei e irei ficando enquanto me quiserem.
Obrigado Mata Hari, e demais colaboradores.
Passemos, pois, agora ao que interessa.
Sou velho [Comentário 1- Seguramente, já aposentado e, por isso mesmo, bem sabedor do ofício, bem seguro das ilusões e desilusões da profissão]. Já vi muito. Já vivi muito. Já assisti a muito. Já me apeteceu presentear terceiros com umas bordoadas bem assentadas. Resisti todavia à tentação de o fazer. Coisa diferente são as bordoadas escritas. Que se pretende que doam, que acordem quem lê, mas que não deixem manchas negras na pele, só a impressão nítida e vincada de que se deve parar para pensar.
Muita coisa se diz sobre ser Juiz [Comentário 2- Sobre o Médico ouvem-se também muitos comentários e, infelizmente, nem sempre correspondem à letra grande que ele merece, quando se envolve com sacrifício, dedicação, humanismo e altruísmo no tratamento e recuperação dos seus doentes.] ... Com letra grande, sim, que nunca aprendi a escrevê-lo com pequena. Ser Juiz é ser Homem ou ser Mulher com letra grande. É ser Íntegro e Honesto com letra grande. É ser-se Público [Comentário 3- Não havendo tribunais privados, teria mesmo que ser Público. O médico, esse, não podendo ou não querendo ficar apenas pelo exercício da atividade pública, mal paga e sem os privilégios concedidos a outras castas (subsídios de renda de casa, de deslocação para o seu local de trabalho, acesso/uso grátis de transportes públicos), como tem possibilidade de exercer em instituições de saúde, sejam elas públicas ou não, poderá sempre optar pelo Privado, com todas as implicações que isso também implica.], com letra grande. E ter ao mesmo tempo a sabedoria do estudioso, a humildade de um beneditino [Comentário 4- O confronto diário com a multiplicidade de dúvidas e dificuldades apresentadas pela doença e pelo doente, nem sempre fáceis ou imediatos em termos de compreensão e de solução, implica, para além de uma permanente postura hipocrática humanista e filantrópica, um esforço constante de estudo e atualização de conhecimentos e técnicas fundamentais a essa praxis.].
“Deve o Juiz ser sancionado, pergunta-se, por ter trabalho em atraso? Muitos referem que sim, e afirmam e reafirmam, e encarniçam-se as vozes esganiçadas contra os Juízes, nos seus dez pequenos minutos de fama, como se as luzes da ribalta fossem para eles o pão para a boca. [Comentário 5 - Do mesmo modo, nos atrevemos a perguntar se é justo que se sancione o médico por não conseguir dar resposta às crescentes solicitações e exigências da saúde, cada vez mais exaurida de recursos? Todos os dias a população contesta as listas de espera das consultas, a celeridade do ato médico, críticas seguramente pertinentes se não tivéssemos que entrar em linha de conta com as determinações e constantes pressões emanadas da Saúde, cada vez mais economicistas, exagerando na poupança dos recursos técnicos e humanos e alheando-se das dificuldades do médico e do próprio doente.]
A Justiça para ser justa quer-se célere. Imperativo categórico repetido à exaustão, a que não falha razão, mas que engana pela falácia. Pois houvesse condições dignas de trabalho e a Justiça seria justa e mais do que justa [Comentário 6 - Sem dúvida que a celeridade no acesso à justiça e à saúde seriam as chaves mestras para uma sociedade mais justa, mais saudável, física e psicologicamente, e mais feliz. E, meus amigos, não nos iludamos, toda a gente sabe disto! Não andasse a Justiça, desde tempos imemoriais, às costas vergadas dos Juízes, esses seres magnânimos e estóicos, mais frugais e desapegados das coisas materiais do que monges budistas, e ver-se-ia o Estado a desabar. [Comentário 7- Desde os tempos imemoriais? Quando? Seguramente, não se verificou em todas as épocas tal desapego às coisas materiais, pelo menos em Portugal. Esta é uma das notas de que discordamos em absoluto. No século XV, há claramente “uma inferioridade de categoria da medicina relativamente ao direito e aos cânones, visto que o mestre de leis recebia 600 libras, o de cânones 500, o de medicina e ode gramática 200, o de lógica ou dialética 100 e o de música 65”. (MIRA, Mateus Boleto Ferreira de, História da Medicina Portuguesa, Lisboa, 1947, p.41)] Era assim e continua a ser tal discrepância de tratamento, no que toca a honorários e regalias aferidos, mesmo no exercício público, e apenas público, das duas profissões. É o amor à camisola desses bravos jogadores que mantém acesa a chama da Justiça, pois de contrário ter-se-ia há muito extinguido, dela não restando mais que um pavio seco e malcheiroso, e da Democracia não restando nem o nome.
Já são penalizados, como toda a gente sabe, e se não sabe devia saber. Ao contrário dos senhores legislativos, que diarreiam projectos de lei feitos com os pés em cada volta ao bilhar grande, os Juízes são inspeccionados [Comentário 8 - Concordamos em absoluto com esta crítica. “Diarreiam projetos de lei “. E como a maior parte deles são vergonhosamente elaborados e cheios de truques nojentos, sendo tudo menos “gerais e abstratos”, qualquer cidadão mais descontente se permitiria a corrigir ligeiramente o que o Sr. Juiz afirma, jurando-lhe que “não são feitos com os pés”, mas com as patas. Ninguém com verticalidade, ou seja com pés assentes no chão, no seu perfeito juízo, faz leis e projetos como alguns que têm sido paridos nestes últimos anos de democracia.]. Têm avaliações e processos disciplinares. Não podem contar com grande coisa das altas instâncias da sua profissão, aliás, a não ser para inspeccionar e sancionar. E submetem-se e trabalham e não protestam, e nem sequer falam alto pois o som da sua voz poderá incomodar alguém, e não é de bom tom um Juiz dar nas vistas. Não é, de facto.[Comentário 9 - Aqui discordamos um pouco da brandura que se aconselha a ter nos protestos. Não contestar em termos radicais nem acintosos, mas há que vir de dentro a voz da mudança e a voz dos juízes, emitida com frontalidade, persistência e, sobretudo, propriedade, porque são eles que sabem do que falam, são eles que aplicam no terreno as ditas leis, acabará por ser ouvida. Quando algum fármaco, protocolo terapêutico ou técnica autorizados e ensaiados no terreno mostram falhas, insuficiências ou mesmo riscos iatrogénicos compete ao aplicador, neste caso ao médico, alertar para esses riscos, de modo a que se proceda à sua alteração ou suspensão. Na justiça, deveria ser o mesmo. Se tantos constatam que não está bem, a união faz a força e vença-se o comodismo e a inércia. Proteste-se. Alerte-se. Corrija-se.]
“Falo-vos do amor à camisola. Clubite mais entusiasmada não vereis, no cumprimento de regras estapafúrdias, impostas por autoridades cinzentas, levando ao paroxismo do absurdo a dedicação obstinada. Trabalham dia fora, noite dentro. Esquecem as famílias, os amigos. Crescem os filhos sem os conhecer. As mulheres vivem outras vidas, e apaixonam-se por outros com mais tempo e sorriso mais aberto. Os maridos encostam-se à vida de solteiros, se não são pais, e se o são, ao cuidar dos filhos, muitas vezes com o apelo de outras saias. Juiz não tem hora de chegar a casa, seja homem ou mulher [Comentário 10 - Pois. Os médicos, esses, com o cumprimento de serviços de urgências uns atrás dos outros, seguramente, têm uma vida familiar bem diferente das dos juízes. Cansam-se de conviver com amigos, filhos e esposas…nem há índices de divórcio elevado entre profissionais de saúde, médicos e enfermeiros. Uma vida santa! A que se deverá tamanha santidade?! Estamos a ser irónicos, mas realistas, como é óbvio!]. Juiz não tem horário. Juiz não tem amigos. Juiz não tem vida. E agora, Juiz não tem sequer salário. Ou pelo menos, alguma coisa digna desse nome que lhe permita cumprir com honradez as obrigações que assumiu no tempo em que o Estado cumpria as suas.[Comentário 11 - Bem, tendo em conta o que ganha um médico do serviço público e comparando-o com o de um magistrado, perguntaríamos o que é este último ganharia com a troca? Mas, na verdade, essa diferença de estatuto, e bem marcada, já vem de trás, muito de trás. Releia-se o comentário 7].
São estes jogadores de camisolas cinzentas e de becas negras que vedes todos os dias mourejando, de cenho enrugado, desencantados da vida e sem saber já de que cor é o céu, de olhos postos nos processos, no teclado dos computadores, vociferando com um tal estado de Citius que lhes impede a sentença ou o despacho saídos em prazo, ou fora de prazo, mas a jeito. São estes homens e mulheres que entram todos os dias nos tribunais sem curar de, um dia, porque a jeito, levarem um tiro, porque a sentença não agradou e a segurança não existe. [Comentário 12- Se soubessem as vezes que um médico, não por sua culpa, mas por insuficiência de recursos e limitações do sistema, já foi esbofeteado, socado, insultado e agredido com arma branca e até a tiro? O risco, infelizmente, é o mesmo para todas as profissões que lidam com emoções humanas.]São estes homens e mulheres que desperdiçam todos os dias da sua vida, a sua vida em prol do interesse público. São estes os jogadores que temos! E gente mais dedicada não pode haver. Sem balneários, sem bolas, sem relvado, sem equipamentos, sem chuteiras, eles jogam 24 horas por dia, sem parar. Tudo lhes falta menos a força. Ah! Esperem! Minto! Há uma coisa que não lhes falta: os treinadores.
Pois neste País de dez milhões de treinadores de futebol, no que toca à Justiça temos também dez milhões. Eles acumulam. Eles sabem de tudo. Discutem a propriedade de um penálti com o mesmo ar superior de que discutem uma sentença ou um acórdão. Especialmente… se for para dizer mal. Ah, raios os partam, os treinadores! Muito sabem eles sobre isto e sobre aquilo, divagando doutoralmente sobre o resumo do último acórdão da Relação que veio publicado num pasquim qualquer. Que era golo! Mas o árbitro anulou. Que era canto, mas o árbitro não viu. Que era falta, mas o bandeirinha não assinalou. Que foi ao poste, mas devia ter entrado, e senão entrou, a culpa é do malfadado Juiz, o culpado de todos os pecados, esse ser a quem atribuem poderes místicos, e que não acerta uma, o miserável, apesar de todos os privilégios que possui.
Não faltam os treinadores de elite. Os barões e baronesas de alta estirpe. Também esses vêm espetar, de quando em vez, uma afiada bandarilha nas costas já vergadas dos Juízes. A quem interessará tal faena na arena conturbada da Justiça, senão a afastar das misérias da sua casa a atenção faminta do Zé Povinho, apontando o argueiro em olho alheio?
Quando termina o último episódio da novela, quando já se esgravataram à exaustão os segredos hediondos das casas dos segredos e quejandos, de quem se irá dizer mal a seguir? Que o nosso bom tuga não sabe viver sem dizer mal. Sem vilipendiar. Sem espiolhar a fundo.” (…)
Temos dez milhões de treinadores de futebol. Temos dez milhões de treinadores da Justiça. [Comentário 13- De médico e de louco, todos temos/têm um pouco. Com a Internet, então, não há ninguém que não ouse estabelecer diagnósticos e efetuar terapêuticas. Também se discute o que o médico decidiu ou não, o que medicou ou não. Toda a gente pensa que é expert em tudo. Pelo nosso lado, apenas aferimos os resultados, tal como o doente. Quem presta o serviço é que deve interrogar-se se é um bom serviço ou não, se é eficaz ou não, se resolve o problema ou não, se a sua decisão, com base nos instrumentos que tem, é ou não suficientemente pedagógica ou preventiva, se o seu papel é ou tem sido positivo e impeditivo de comportamentos ou crises recorrentes. E isto, quer em medicina, quer em magistratura. Se não se atingem os tais objetivos supremos, pelos quais tanto se lutou ou luta a vida inteira, então, algo tem que ser mudado: será o instrumentista ou o instrumento?]
Deus nos livre porém dos que connosco compartilham a tarefa, e se crêem melhores ou mais justos.
Vem-me à memória já cansada uma história que se contava sobre Leonardo da Vinci. Conta-se que, observando uma das suas telas, um sapateiro lhe chamou à atenção sobre a forma como ele tinha pintado uma sandália, apontando-lhe um erro crasso. Leonardo, humildemente, aceitou a crítica e corrigiu o erro, rectificando a tela. Ufano, o sapateiro, permitiu-se então começar a opinar sobre outras coisas, criticando a perspectiva, a luz, o enquadramento. Leonardo atalhou, cortando cerce tal prosápia, e disse-lhe certeiro: “- Não suba o sapateiro acima da sandália!”[Comentário 14 - Não se deve subir acima da sandália. Concordamos em absoluto com esta frase lapidar! Mas se a sandália nos pisa ou nos aperta, é nosso direito queixarmo-nos e lembrarmos humildemente a quem a usa ou a quem a faz que proceda às necessárias correções do artefacto ou cuide de a usar com mais cautela. ESTAMOS TODOS, INFELIZMENTE, A VER E A VIVER O MESMO TEATRO, APENAS UNS ESTÃO INSTALADOS EM CAMAROTE, OUTROS EM PRIMEIRA PLATEIA E OUTROS, AINDA, EM SEGUNDA PLATEIA.]
É isso que este velho vos diz hoje, barões e baronesas que se arvoram treinadores: - Não subais acima da sandália.”
“Comentário-Glosa” feito ao artigo supracitado
João Frada
Professor Universitário