terça-feira, 21 de abril de 2015

CONVERSA DE DOIS BURROS FALANTES, UM DELES MEIO SURDO - "O Povo É Quem Mais Orden(h)a?!"

CONVERSA DE DOIS BURROS FALANTES, UM DELES MEIO SURDO, sobre o tema:

“O povo é quem mais orden(h)a”?!

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Há poucos dias, algures, nas imediações de uma vila do Norte, aí pelo pino do meio-dia, dois burros, amarrados a uma cancela de uma passagem de nível, aguardando pacientemente pelos seus donos, enquanto estes, de barriga encostada ao balcão numa tasca ali perto, escorropichavam uns brancos pra matar a sede, depois de zurrarem uns bons minutos, cumprimentando-se um ao outro, acabaram também por iniciar um curioso diálogo. Em boa hora, um cidadão, que por ali passava, teve o ensejo de gravar esta conversa de burros, na íntegra, no seu telemóvel. Postada na Internet, a reportagem bizarra e original realizada por este amador depressa se tornaria viral.

Um dos burros, com ar de mais novo, empertigado e de orelhas bem levantadas, tece este comentário:

─ Olha lá, não estás cansado de ouvir por aí uma cantilena curiosa, que se entoa em todo o lado, nas ruas, na rádio, na televisão: “o povo é quem mais ordena”?!

̶  Tens razão, é um refrão bem conhecido e ouve-se todos os anos muita gente, por esta altura, a afirmar o mesmo.

─ Pois é, o problema é que não percebo quem é que ordena, se é que tenho ouvido bem a palavra. Tenho dúvidas, se é “ordena” ou “ordenha”.

̶  Bem, na verdade, também não te posso confirmar. De resto, há muita gente disléxica e, no meu caso, surda. Pode não ser “ordena” mas “ordenha”. E sabes porquê?

̶   Não. Mas diz-me lá o que pensas.

̶  Simples. Ordenar, não me parece que o povo ordene coisa nenhuma, porque se bem te lembras, nas últimas eleições, e foi coisa que segui atentamente na cavalariça da estalagem onde passei a noite da contagem dos votos, pude constatar que metade do povo nem sequer votou. Por isso, se não vota, não manda, não pode ordenar nada.

̶  Espera aí. Para além de estares bem informado, como vejo, tens acesso a televisão nos teus alojamentos?

̶  Claro. Como já deves ter reparado, sou um burro de nova geração, não carrego sacos de carvão como muitos burros que para aí andam, faço turismo rural e monta-me apenas gente de “pedigree”, tirando o meu dono, claro, o Senhor Cientista, que é ex-bancário na reforma e, para ganhar mais uns cobres, dedicou-se a fazer serviços em estalagens e casas de turismo rural aqui por estes lados. Esse, monta-me quando lhe apetece.

̶   Mas, então o teu dono, é cientista de quê?

̶  Bem, que eu saiba, não domina ciência nenhuma, a não ser de gestão, tal como o pai, que também era conhecido como Cientista. Possuía uma tasca lá para o Sul e o prato típico que era servido aos clientes consistia em cabeças de borrego no forno. Não tinha qualquer outra oferta gastronómica, a não ser queijo e azeitonas, mas fez uma fortuna. Comprava cabeças de borrego, a preço da uva mijona, e vendia-as assadinhas, a bom preço.

̶   Ainda assim,  ̶  insistia o burro mais velho  ̶  não entendo como é que o homem havia de ser batizado de Cientista. O que eu acho é que esta alcunha resultará de outra razão qualquer, eventualmente, de algum familiar que foi mesmo cientista.

̶   Não, não. O senhor Cientista foi alcunhado de cientista, por ser especialista em “crânios” assados de borrego, que atraíam freguesia até da capital, tal era a categoria dos assados, miolos e bochechas. Ora, daí a ser alcunhado de Cientista, foi um pulo.

̶   Já percebi. Um cientista gastronómico.

̶   Nem mais. E é essa a razão, pela qual somos sempre tratados com toda a cortesia, onde nos solicitam presença e serviços de turismo, passeios pedagógicos, durante os quais o meu patrão, o Senhor Cientista, dá autênticas palestras sobre usos, costumes, ecologia, ambiente, gastronomia e culinária local, aos turistas que eu e os meus colegas carregamos no lombo.

̶   Tu e os teus colegas?! Quais? Há mais gente a trabalhar nesse ramo?

̶   Claro. Somos doze burros, ao todo. A “Associação de Proteção dos Direitos dos Burros”, da qual sou filiado, uma espécie de Sindicato profissional, vela pelos nossos direitos e conseguiu um acordo de horário de trabalho razoável com o Senhor Cientista. Para folgarmos as costas e nos recompormos do desgaste a que nos sujeitamos, metade da equipa descansa, enquanto a outra trabalha. Já lá vai o tempo de termos de trabalhar 24 horas seguidas.

̶   Estou espantado, com tudo o que me contas. Eu, nem fazia ideia que havia Sindicato de burros. O meu patrão, é um bronco que só me vê como burro de carga e me trata abaixo de cão. Estou velho e surdo e já não tenho fôlego para lhe fazer frente. Vou amochando as orelhas e cumprindo o meu trabalho, mas, acredita, como tantos que para aí andam, não sou um burro feliz  ̶  termina, com ar profundamente descoroçoado, o burro mais velho.

     Durante alguns minutos, ficaram ambos calados, olhando um para o outro.    

̶   Agora, vou entendendo porque é que o teu patrão dorme a teu lado, quando te aluga e acompanha nesses passeios rurais. E porque é que têm acesso a boa cama, a boa mesa e a ver TV.

̶   Bem, não tem a ver apenas com a consciência profissional do meu patrão. Nos tempos que vão correndo, ou nos tratam bem ou sujeitam-se a ver-nos partir, definitivamente, para qualquer outro local onde nos consideram como gente. Tens lá a noção, porque é que o número de burros chegou onde chegou? Estamos em vias de extinção, ou não tinhas dado por isso?

̶ Então, não?! Montavam-nos de todas as maneiras, albardavam-nos sem o mínimo de respeito, sobrecarregando-nos como se fossemos “cavalos a abater”. Resultado: houve uma emigração em massa e por cá só ficaram meia dúzia de burros. Aqui tens a explicação.

̶   Eu considero-me sortudo, porque tenho uma profissão e vou sobrevivendo com o que me pagam. De resto, sou um burro instruído, não sou um jumento qualquer. Ah, e nunca tive tantos admiradores como agora. Por outro lado, sinto-me razoavelmente seguro, já que a “Associação de Proteção dos Direitos dos Burros”, fundada por uma série de veneráveis, gente de alta estirpe asinina, vela pelos nossos interesses e bem-estar.

̶  Bem, já percebi porque é que tens tido direito a tantas mordomias. O teu patrão é um homem com nível e, apesar de não ser um verdadeiro cientista, recebe alojamentos adequados ao seu estatuto.

̶  Pareces então admirado pela forma como o meu patrão não me discrimina e até partilha o mesmo teto comigo. Deixa-me perguntar-te uma coisa:  ̶  Nunca ouviste falar de gente que vive paredes meias com cabras, vacas e bois, burros, mulas, cavalos e éguas, aqui por estas bandas? Melhor dizendo, no rés-do-chão ou sub-loja, vive a bicharada toda; no andar imediatamente acima ou loja, vivem os patrões com direito a ar quente condicionado, durante o Inverno.  

 ­̶  Já ouvi, e não só. Eu próprio, durante uma noite de invernia, fiquei alojado num desses palheiros. E, ao contrário de ti, sem direito a TV. Apenas nos divertimos, ouvindo os traques uns dos outros. As cabras, então, são fedorentas. Julguei morrer sufocado, dessa vez.

     Os dois burros estavam nesta lengalenga e, a seu lado, passava um bando de indivíduos, de cartazes na mão, entoando meio desafinados: “O povo é quem mais ordenaaaa”!

̶   Ora aqui temos o mote da conversa. Deixa-me lá ouvir o que eles dizem, porque ler aquelas parangonas esborratadas a esta distância, com a minha miopia, já não é pra mim.

̶   É, claramente, “ordena”, asseguro-te   ̶  diz o mais novo.  ̶  E acrescenta: 

̶  Voltando à vaca fria, o povo não ordena, mas é ordenado e cumpre tudo, integralmente, tudo quanto lhe mandam. Por isso, não me parece que tenhamos ouvido bem.

̶   Talvez não seja “ordena”, mas “ordenha” ̶  remata o burro velho.  ̶   Às tantas estamos mesmo a ouvir mal. Fazia mais sentido que fosse “ordenha”. O povo, o que vota e o que não vota, quer queira quer não, é quem mais “ordenha”.

̶   Realmente, quem está no terreno, quem vive no mundo rural, onde há vacas, cabras e ovelhas pra ordenhar, é o povo. Não quem governa. Esses mamam, directamente, de outras tetas bem mais fartas, preocupam-se com outras ordenhas.

̶   Bem visto. É uma verdade tão à vista que não precisa de ser enfatizada, muito menos, cantando ou protestando, como esses de há pouco, já para não falar que a mesma cantilena tem constante direito de antena na rádio e na televisão. Pra quê, bater tanto nesta tecla. Não vai mudar nada. Ainda se se tratasse de ordenha, perceberia, agora ordena!

̶  Se a intenção de quem escreveu o cartaz não era “ordenha”, mas “ordena”, e foi o que li  ̶ diz o burro mais novo  ̶ , então o povo ordena o quê, a quem, quando, quanto, de que forma?

̶   Tens razão. Na verdade, não faz sentido.

̶   Pois não. É que o povo, do jeito que ordena, é mais burro do que nós. Delega o seu poder político em gente que não tem o mínimo de credibilidade para governar o que quer que seja. A não ser as suas carteiras. Aí, esmeram-se.       

̶   Por esse prisma, não há dúvida. Se se trata mesmo de “ordena”, então o povo é um desastre a ordenar   ̶  remata o burro mais velho.    

̶  Pensando bem, “ordena” ou “ordenha”, no fundo, vai dar ao mesmo: o povo é quem mais ordenha e quem menos ordena. E ponto final   ̶ conclui o mais novo.

    Zurrando de gozo, deste trocadilho, acabam por rir até às lágrimas.    

     O burro velho, remoendo ainda sobre as considerações do seu colega, lembra-se também de uma curiosa notícia que ouvira ao seu patrão, quando este conversava com a sua filha mais nova, a propósito do horário especial de aleitamento que esta solicitara na empresa onde trabalhava, procurando continuar a amamentar o filho, já com um ano de idade.

̶   Pode não significar nada, mas ouvi a filha do meu patrão frisar, e bem, que vai ter direito a um horário especial de trabalho, mais reduzido, para continuar a amamentar o miúdo, pelo menos, até aos dois anos, como aconselha a OMS. O director da empresa é que parece que não está pelos ajustes e exige que o médico pediatra ou uma Junta de clínicos confirme se ela continua ou não a produzir leite, ou se trata de uma trapaça.

̶   Há que ter em conta essa possibilidade. A manha das pessoas, por vezes, deixa-nos realmente boquiabertos. A nós, se fingimos cansaço ou recusamos uma albarda, estamos lixados. E há muitos que se não livram do chicote  ̶  comenta o mais novo.  ̶  Mas, já agora, explica-me lá essa coisa do aleitamento e da relação com o nosso tema da “ordenha” e da política. 

     O burro velho, temporariamente ocupado em enxotar algumas moscas impertinentes que lhe não largavam as orelhas, depois de umas fortes abanadelas de rabo, continuaria a conversa:  

̶   Pretendo apenas confirmar que talvez não seja tão irreal “ordenhar” humanos por decisão governamental, mulheres lactantes, neste caso. De resto, se o Governo já tosquia, e bem, os milhões de carneiros que por aí andam, porque é que não há de também ordenhá-los?!

     A ironia desta análise acabaria por gerar em ambos um ataque de riso e gargalhadas, durante largos minutos. Mais recomposto, o burro velho retoma o tema:              

̶   Para evitar e controlar situações fraudulentas, segundo o que ouvi, em número significativo e com algum impacto em termos de “baixas” e consequente penalização das empresas e da Segurança Social, o Governo não vai ordenhar ninguém, mas pede aos médicos que vigiem e confirmem se as lactantes, obrigadas a auto-ordenharem-se de três em três meses à sua frente, devem ou não continuar a gozar das respectivas regalias que esta condição lhes confere.

     A conversa iria ser abruptamente interrompida pelos seus donos que se haviam, entretanto, aproximado e discutiam a qualidade e o preço do vinho acabado de beber na tasca ali ao lado.  

     Zurraram bem alto, numa despedida calorosa, e ainda tiveram tempo de lembrar um ao outro que aquele “slogan” já escutado por diversas vezes, sempre no meio de protestos, de palavras de ordem e de uma constante chinfrineira, tanto podia ser “ordena” como “ordenha”. O repórter amador afastara-se, entretanto, mas iria deixar para a posteridade um diálogo de burros que de burros não tinham nada.     

João Frada

Professor Universitário (Ph.D.)

Crónicas Semânticas 2000