“O povo é quem mais orden(h)a”?!
Há poucos dias, algures, nas imediações de uma vila do Norte, aí
pelo pino do meio-dia, dois burros, amarrados a uma cancela de uma passagem de
nível, aguardando pacientemente pelos seus donos, enquanto estes, de barriga
encostada ao balcão numa tasca ali perto, escorropichavam uns brancos pra matar
a sede, depois de zurrarem uns bons minutos, cumprimentando-se um ao outro,
acabaram também por iniciar um curioso diálogo. Em boa hora, um cidadão, que
por ali passava, teve o ensejo de gravar esta conversa de burros, na íntegra,
no seu telemóvel. Postada na Internet, a reportagem bizarra e original realizada
por este amador depressa se tornaria viral.
Um dos burros, com ar de mais novo, empertigado e de orelhas bem
levantadas, tece este comentário:
─ Olha lá, não estás cansado de ouvir por aí uma cantilena
curiosa, que se entoa em todo o lado, nas ruas, na rádio, na televisão: “o povo
é quem mais ordena”?!
̶ Tens razão, é um refrão
bem conhecido e ouve-se todos os anos muita gente, por esta altura, a afirmar o
mesmo.
─ Pois é, o problema é que não percebo quem é que ordena, se é que
tenho ouvido bem a palavra. Tenho dúvidas, se é “ordena” ou “ordenha”.
̶ Bem, na verdade, também não
te posso confirmar. De resto, há muita gente disléxica e, no meu caso, surda.
Pode não ser “ordena” mas “ordenha”. E sabes porquê?
̶ Não. Mas diz-me lá o que
pensas.
̶ Simples. Ordenar, não me
parece que o povo ordene coisa nenhuma, porque se bem te lembras, nas últimas
eleições, e foi coisa que segui atentamente na cavalariça da estalagem onde
passei a noite da contagem dos votos, pude constatar que metade do povo nem
sequer votou. Por isso, se não vota, não manda, não pode ordenar nada.
̶ Espera aí. Para além de
estares bem informado, como vejo, tens acesso a televisão nos teus alojamentos?
̶ Claro. Como já deves ter
reparado, sou um burro de nova geração, não carrego sacos de carvão como muitos
burros que para aí andam, faço turismo rural e monta-me apenas gente de “pedigree”,
tirando o meu dono, claro, o Senhor Cientista, que é ex-bancário na reforma e,
para ganhar mais uns cobres, dedicou-se a fazer serviços em estalagens e casas
de turismo rural aqui por estes lados. Esse, monta-me quando lhe apetece.
̶ Mas, então o teu dono, é
cientista de quê?
̶ Bem, que eu saiba, não
domina ciência nenhuma, a não ser de gestão, tal como o pai, que também era
conhecido como Cientista. Possuía uma tasca lá para o Sul e o prato típico que
era servido aos clientes consistia em cabeças de borrego no forno. Não tinha
qualquer outra oferta gastronómica, a não ser queijo e azeitonas, mas fez uma
fortuna. Comprava cabeças de borrego, a preço da uva mijona, e vendia-as
assadinhas, a bom preço.
̶ Ainda assim, ̶
insistia o burro mais velho
̶ não entendo como é que o homem
havia de ser batizado de Cientista. O que eu acho é que esta alcunha resultará
de outra razão qualquer, eventualmente, de algum familiar que foi mesmo
cientista.
̶ Não, não. O senhor
Cientista foi alcunhado de cientista, por ser especialista em “crânios” assados
de borrego, que atraíam freguesia até da capital, tal era a categoria dos
assados, miolos e bochechas. Ora, daí a ser alcunhado de Cientista, foi um
pulo.
̶ Já percebi. Um cientista
gastronómico.
̶ Nem mais. E é essa a
razão, pela qual somos sempre tratados com toda a cortesia, onde nos solicitam
presença e serviços de turismo, passeios pedagógicos, durante os quais o meu
patrão, o Senhor Cientista, dá autênticas palestras sobre usos, costumes,
ecologia, ambiente, gastronomia e culinária local, aos turistas que eu e os
meus colegas carregamos no lombo.
̶ Tu e os teus colegas?!
Quais? Há mais gente a trabalhar nesse ramo?
̶ Claro. Somos doze burros,
ao todo. A “Associação de Proteção dos Direitos dos Burros”, da qual sou
filiado, uma espécie de Sindicato profissional, vela pelos nossos direitos e
conseguiu um acordo de horário de trabalho razoável com o Senhor Cientista.
Para folgarmos as costas e nos recompormos do desgaste a que nos sujeitamos, metade
da equipa descansa, enquanto a outra trabalha. Já lá vai o tempo de termos de
trabalhar 24 horas seguidas.
̶ Estou espantado, com
tudo o que me contas. Eu, nem fazia ideia que havia Sindicato de burros. O meu
patrão, é um bronco que só me vê como burro de carga e me trata abaixo de cão.
Estou velho e surdo e já não tenho fôlego para lhe fazer frente. Vou amochando
as orelhas e cumprindo o meu trabalho, mas, acredita, como tantos que para aí
andam, não sou um burro feliz ̶ termina, com ar profundamente descoroçoado, o
burro mais velho.
Durante alguns minutos,
ficaram ambos calados, olhando um para o outro.
̶ Agora, vou entendendo
porque é que o teu patrão dorme a teu lado, quando te aluga e acompanha nesses
passeios rurais. E porque é que têm acesso a boa cama, a boa mesa e a ver TV.
̶ Bem, não tem a ver
apenas com a consciência profissional do meu patrão. Nos tempos que vão
correndo, ou nos tratam bem ou sujeitam-se a ver-nos partir, definitivamente,
para qualquer outro local onde nos consideram como gente. Tens lá a noção,
porque é que o número de burros chegou onde chegou? Estamos em vias de extinção,
ou não tinhas dado por isso?
̶ Então, não?! Montavam-nos de todas as maneiras, albardavam-nos
sem o mínimo de respeito, sobrecarregando-nos como se fossemos “cavalos a
abater”. Resultado: houve uma emigração em massa e por cá só ficaram meia dúzia
de burros. Aqui tens a explicação.
̶ Eu considero-me sortudo,
porque tenho uma profissão e vou sobrevivendo com o que me pagam. De resto, sou
um burro instruído, não sou um jumento qualquer. Ah, e nunca tive tantos
admiradores como agora. Por outro lado, sinto-me razoavelmente seguro, já que a
“Associação de Proteção dos Direitos dos Burros”, fundada por uma série de
veneráveis, gente de alta estirpe asinina, vela pelos nossos interesses e
bem-estar.
̶ Bem, já percebi porque é
que tens tido direito a tantas mordomias. O teu patrão é um homem com nível e,
apesar de não ser um verdadeiro cientista, recebe alojamentos adequados ao seu
estatuto.
̶ Pareces então admirado
pela forma como o meu patrão não me discrimina e até partilha o mesmo teto
comigo. Deixa-me perguntar-te uma coisa:
̶ Nunca ouviste falar de gente
que vive paredes meias com cabras, vacas e bois, burros, mulas, cavalos e
éguas, aqui por estas bandas? Melhor dizendo, no rés-do-chão ou sub-loja, vive
a bicharada toda; no andar imediatamente acima ou loja, vivem os patrões com
direito a ar quente condicionado, durante o Inverno.
̶ Já ouvi, e não só. Eu próprio, durante uma
noite de invernia, fiquei alojado num desses palheiros. E, ao contrário de ti,
sem direito a TV. Apenas nos divertimos, ouvindo os traques uns dos outros. As
cabras, então, são fedorentas. Julguei morrer sufocado, dessa vez.
Os dois burros estavam
nesta lengalenga e, a seu lado, passava um bando de indivíduos, de cartazes na
mão, entoando meio desafinados: “O povo é quem mais ordenaaaa”!
̶ Ora aqui temos o mote da
conversa. Deixa-me lá ouvir o que eles dizem, porque ler aquelas parangonas
esborratadas a esta distância, com a minha miopia, já não é pra mim.
̶ É, claramente, “ordena”,
asseguro-te ̶ diz o
mais novo. ̶ E acrescenta:
̶ Voltando à vaca fria, o
povo não ordena, mas é ordenado e cumpre tudo, integralmente, tudo quanto lhe
mandam. Por isso, não me parece que tenhamos ouvido bem.
̶ Talvez não seja “ordena”,
mas “ordenha” ̶ remata o burro
velho. ̶
Às tantas estamos mesmo a ouvir
mal. Fazia mais sentido que fosse “ordenha”. O povo, o que vota e o que não
vota, quer queira quer não, é quem mais “ordenha”.
̶ Realmente, quem está no
terreno, quem vive no mundo rural, onde há vacas, cabras e ovelhas pra
ordenhar, é o povo. Não quem governa. Esses mamam, directamente, de outras
tetas bem mais fartas, preocupam-se com outras ordenhas.
̶ Bem visto. É uma verdade
tão à vista que não precisa de ser enfatizada, muito menos, cantando ou
protestando, como esses de há pouco, já para não falar que a mesma cantilena
tem constante direito de antena na rádio e na televisão. Pra quê, bater tanto
nesta tecla. Não vai mudar nada. Ainda se se tratasse de ordenha, perceberia,
agora ordena!
̶ Se a intenção de quem
escreveu o cartaz não era “ordenha”, mas “ordena”, e foi o que li ̶ diz o burro mais novo ̶ , então o povo ordena o quê, a quem,
quando, quanto, de que forma?
̶ Tens razão. Na verdade, não
faz sentido.
̶ Pois não. É que o povo, do
jeito que ordena, é mais burro do que nós. Delega o seu poder político em gente
que não tem o mínimo de credibilidade para governar o que quer que seja. A não
ser as suas carteiras. Aí, esmeram-se.
̶ Por esse prisma, não há
dúvida. Se se trata mesmo de “ordena”, então o povo é um desastre a ordenar ̶
remata o burro mais velho.
̶ Pensando bem, “ordena” ou
“ordenha”, no fundo, vai dar ao mesmo: o povo é quem mais ordenha e quem menos
ordena. E ponto final ̶ conclui o mais
novo.
Zurrando de gozo, deste
trocadilho, acabam por rir até às lágrimas.
O burro velho, remoendo
ainda sobre as considerações do seu colega, lembra-se também de uma curiosa
notícia que ouvira ao seu patrão, quando este conversava com a sua filha mais
nova, a propósito do horário especial de aleitamento que esta solicitara na
empresa onde trabalhava, procurando continuar a amamentar o filho, já com um
ano de idade.
̶ Pode não significar
nada, mas ouvi a filha do meu patrão frisar, e bem, que vai ter direito a um
horário especial de trabalho, mais reduzido, para continuar a amamentar o
miúdo, pelo menos, até aos dois anos, como aconselha a OMS. O director da
empresa é que parece que não está pelos ajustes e exige que o médico pediatra
ou uma Junta de clínicos confirme se ela continua ou não a produzir leite, ou
se trata de uma trapaça.
̶ Há que ter em conta essa
possibilidade. A manha das pessoas, por vezes, deixa-nos realmente boquiabertos.
A nós, se fingimos cansaço ou recusamos uma albarda, estamos lixados. E há
muitos que se não livram do chicote
̶ comenta o mais novo. ̶ Mas,
já agora, explica-me lá essa coisa do aleitamento e da relação com o nosso tema
da “ordenha” e da política.
O burro velho,
temporariamente ocupado em enxotar algumas moscas impertinentes que lhe não
largavam as orelhas, depois de umas fortes abanadelas de rabo, continuaria a
conversa:
̶ Pretendo apenas
confirmar que talvez não seja tão irreal “ordenhar” humanos por decisão
governamental, mulheres lactantes, neste caso. De resto, se o Governo já
tosquia, e bem, os milhões de carneiros que por aí andam, porque é que não há
de também ordenhá-los?!
A ironia desta análise acabaria
por gerar em ambos um ataque de riso e gargalhadas, durante largos minutos.
Mais recomposto, o burro velho retoma o tema:
̶ Para evitar e controlar
situações fraudulentas, segundo o que ouvi, em número significativo e com algum
impacto em termos de “baixas” e consequente penalização das empresas e da
Segurança Social, o Governo não vai ordenhar ninguém, mas pede aos médicos que
vigiem e confirmem se as lactantes, obrigadas a auto-ordenharem-se de três em
três meses à sua frente, devem ou não continuar a gozar das respectivas
regalias que esta condição lhes confere.
A conversa iria ser
abruptamente interrompida pelos seus donos que se haviam, entretanto,
aproximado e discutiam a qualidade e o preço do vinho acabado de beber na tasca
ali ao lado.
Zurraram bem alto, numa
despedida calorosa, e ainda tiveram tempo de lembrar um ao outro que aquele
“slogan” já escutado por diversas vezes, sempre no meio de protestos, de
palavras de ordem e de uma constante chinfrineira, tanto podia ser “ordena”
como “ordenha”. O repórter amador afastara-se, entretanto, mas iria deixar para
a posteridade um diálogo de burros que de burros não tinham nada.
João Frada
Professor Universitário (Ph.D.)
Crónicas Semânticas 2000