O Sentido Mágico na Relação Médico-Doente
A magia, marca identificativa
da “primeira infância” cultural da Humanidade, depois de vários milhões de anos
de evolução biológica e civilizacional, persiste no inconsciente de cada ser
humano, latente, como uma luz de presença permanente.
A longevidade da magia sugere,
exatamente, o seu profundo enraizamento no psique do homem.
Apoiando-se em James Frazer e
nos seus conceitos míticos e mágicos, reguladores, em absoluto, do
comportamento de todas as sociedades “ditas primitivas” (modelos analógicos de
importância fundamental para a compreensão, apenas aproximada, da realidade
espiritual, psicológica e mental do Homem pré-histórico), Sigmund Freud traça a
sua visão evolutiva da sociedade e da criança. Na sua ótica, a magia e os seus
processos lógicos regulam, realmente, os ritmos de crescimento ideológico e
conceptual do Homem.
O Homem social, na sua natural
evolução, dependente durante milénios da magia que criou, aperfeiçoou e
utilizou na expetativa de controlar, em seu proveito, todas as forças da
Natureza e do Cosmos, acaba por se consciencializar de que todos os ritos e
esforços nem sempre compensaram ou serviram os seus objetivos. E quando
desacredita na magia, volta-se para o racionalismo e envereda pela via da
ciência. Mas as marcas do pensamento original, arquétipos indesmentíveis do
pré-racionalismo que carateriza os seus primeiros estádios culturais, não mais
se apagariam.
Do mesmo modo, a criança, na
concepção de Freud, ao constatar a sua impotência para dominar o mundo,
consciente de que os obstáculos e barreiras surgidos dia-a-dia não são
transpostos pelos recurso a fórmulas, ritos e passes mágicos, acaba,
inevitavelmente, por substituir o imaginário pela realidade, quando o seu
amadurecimento mental e psicológico se processa de um modo espontâneo e
natural. Mas, tal como para a criança a magia é saudável pelo seu efeito
adaptativo e harmonizante, possibilitando que na sua consciência se estruture,
de um modo suave, a necessária dissociação entre o mítico e o real, também nas
sociedades “ditas primitivas” ela vai
servir como regulador dos mais diversos comportamentos e funções.
Jean Piaget, também ele,
debruçado sobre a magia defendeu e mostrou que até à idade de seis ou sete anos todos os seres humanos vivem num mundo
mágico, partilhando crenças e hábitos com o passado remoto não menos do que com
o primitivo moderno.
Na sua ligação íntima à magia e
aos seus ritos, o homem, sempre com o objetivo de dominar e moldar em seu
proveito todos os fenómenos naturais, viria a descobrir procedimentos e
técnicas eficazes, sobretudo no domínio da fitoterapia, conhecimentos estes de
reconhecido interesse farmacológico.
Os médicos-xamãs, fiéis
depositários desta sabedoria milenar, não desenvolveram, apenas, esta vertente
terapêutica. Cultivaram a hipnose, o gesto e a palavra e demonstraram a sua
força curativa. O envolvimento do terapeuta e do doente, numa destas sessões,
não se circunscreve(ria), estritamente, a este binómio. Todo o coletivo, no
fundo, a família extensa de que faz parte, está presente, assiste e participa,
em corpo e espírito, a este cerimonial de cura.
A pessoa-doente, nestas
sociedades simples, é uma peça vital e a sua incapacidade afeta,
necessariamente, toda a comunidade que, entre caçadores-coletores, raramente
ultrapassa os trinta indivíduos, englobando homens, mulheres e crianças. Assim,
se alguém adoece altera-se, completamente, toda a dinâmica do grupo. E a
explicação da doença é sempre conotada, direta ou indiretamente, com a
comunidade. A esfera social e relacional assume a primeira prioridade na
análise superficial que o terapeuta estabelece, com vista a atalhar o problema.
Um tabu não respeitado, uma malquerença, um mau olhado, uma praga, um feitiço
lançado por alguém descontente ou inimigo constituem, em primeira instância, as
causas da enfermidade. Além destas, há outras mais temíveis: as entidades
sobrenaturais e demoníacas que apenas são suscetíveis às artes da magia branca
ou negra. Os deuses e os demónios, capazes de gerar doença e cura, desde que
devidamente invocados por especialistas, xamãs, curandeiros e feiticeiros,
respondem normalmente aos apelos humanos, persuasivos e reforçados pela força
mágica dos ritos.
A sessão xamânica, mistura de
psicoterapia, de hipnose e de fitoterapia (administram-se, frequentemente,
beberragens preparadas a partir de produtos e substâncias de origem vegetal,
com uma real eficácia terapêutica) pode parecer um ato primitivo à luz dos
conceitos e valores que norteiam a medicina científica. Todavia, não só
constitui o único recurso médico possível para muitos povos do Planeta como se
revela eficaz, garantindo a cura ou o alívio dos doentes.
O médico, sacerdote e mágico,
autoridade reconhecida e prestigiada, detentor de grandes capacidades
esotéricas, capaz de mobilizar a vontade dos homens e dos deuses, procura a
explicação de todos os fenómenos no domínio do sobrenatural mas não descura o
contexto microcósmico, retratado na realidade concreta de ordem natural e
social. Essa perceção proto-racionalista traduz a própria evolução mental e
cultural do Homem, enquanto ser dotado de racionalidade e de inteligência.
O racionalismo de feição
hipocrática irrompido no V século antes de Cristo, corrente, também ela,
heterodoxa, perante um pré-racionalismo convicto e ancestralmente instituído
como via única de acesso ao conhecimento e à verdade, acabaria por se impor e
marcar o ritmo do pensamento médico.
A corrente do saber médico, na
sociedade ocidental, vai-se afastando, cada vez mais, da magia e da religião,
marcas desse pré-racionalismo milenar (bem arreigado no pensamento coletivo) e,
alicerçada no experimentalismo, atinge, finalmente, no século XIX a meta
científica. Mas alguns dos ritos, crenças, superstições e conceitos mágicos em
redor do binómio doença-cura, remanescências marginais ao processo de
cientificidade, jamais desapareceriam. Assim, persistentes no tempo, viriam a
assumir-se como recursos paralelos à ciência médica, com adeptos fervorosos e
em grande número, contabilizados, sobretudo, entre as comunidades simples de
todo o Mundo.
Por outras razões, bem
compreendidas, decerto, numa ótica sociológica, o recurso a práticas médicas
tradicionais têm hoje, no final do século XX, um eco de grande expressão mesmo
nas sociedades ditas evoluídas. Talvez, por isso mesmo, James Frazer considere
a magia como uma irmã bastarda da ciência.
O próprio ato médico
racionalisto-científico, obrigatoriamente hipocrático nos princípios éticos e
deontológicos é, acima de tudo, um fenómeno com uma grande carga mágica não,
obviamente, pelos processos e técnicas objetivos utilizados, mas pelo ambiente
contextual, holístico e subjetivo que cada relação médico-doente exige e
determina. Hipócrates, atento à importância dos múltiplos fatores intrínsecos e
extrínsecos de ordem orgânica, psicofisiológica e genética, ambiental e
climatológica, traça no seu tratado “Dos ares, águas e lugares” uma panorâmica
clara do modo como a saúde e a doença deverão ser encaradas, quer no domínio
etiopatogénico quer no domínio da terapêutica curativa e preventiva, realçando,
pela primeira vez, na História Médica, a perspetiva da globalidade do fenómeno
saúde-doença. É evidente que a avaliação exaustiva do doente e das suas queixas
implica uma história clínica rigorosa e essa condução não pode dispensar uma
empatia profunda com o paciente. Só assim poderá ser possível determinar a
causa ou causas da enfermidade e gerar, ao mesmo tempo, a necessária confiança
e colaboração do doente no cumprimento terapêutico.
A força curativa da palavra, já
pressentida e desenvolvida entre os xamãs, é encarada ao logo de séculos como
uma das mais eficazes vias terapêuticas. O poder da sugestão verbal é,
claramente, reconhecido a nível médico e o próprio D. João IV, a conselho dos
seus físicos, concede a um soldado, por alvará, “Carta para curar” através da
palavra, arte esta que o mesmo parece ter desempenhado com eficiência,
tratando, segundo parece, grande número de militares estacionados no Alentejo.
Satisfeito com o seu trabalho, o monarca tê-lo-ia, mesmo, agraciado com uma
tença anual.
Uma outra modalidade
terapêutica, o toque ou imposição das mãos, do Rei, de Cristo ou de um Santo
taumaturgo capaz de mobilizar energia benéfica e miraculosa, é apenas atributo
de alguns, verdadeiramente dotados, iluminados ou escolhidos por Deus, os
quais, através do simples contacto promovem a cura ou o alívio das mais
diversas maleitas humanas. Colocando as mãos sobre a cabeça do paciente ou,
diretamente, sobre órgãos doentes ou não funcionais, o terapeuta, fonte de
energia medicinal de origem natural (cite-se o magnetismo, por exemplo) ou de
ordem sobrenatural e mística, alcança curas que são, aos olhos dos doentes,
autênticos milagres. A crença mágica funciona uma vez mais, quer do lado
recetor quer do lado emissor.
Quando todas as circunstâncias
e coincidências se conjugam e a cura parece, mesmo, ter resultado do toque real
ou sacro-taumatúrgico, a crença, nas mentes sugestionáveis e simples,
reforça-se um pouco mais.
Vespasiano, Imperador Romano no
século I a.C., curava a cegueira pelo toque. O próprio Cristo dá vista aos
cegos e marcha aos paralíticos pelo simples ato do gesto ou da palavra. Do
mesmo modo, não só se acredita que Luís XIV, o Rei-Sol, promove curas, como nos
garante André Du Laurens (Mestre em Montpellier na época), porque é dotado por
Deus com a capacidade de sanar a escrófula tuberculosa (também designada por mal do rei) como vemos Carlos X, também
rei de França, a ser procurado em 1824, já na era científica, para exercer o
seu poder curativo através do toque. Mas as tradições francesas nestas artes
tão sui generis, praticadas pela sua
realeza, vêm muito de trás. O próprio Imperador Clóvis, da era Merovíngia,
acreditava-se, curava também pelo simples contacto das mãos.
Entre os Ingleses, Eduardo, “O
Confessor”(1002-1066), terá propiciado a cura a grande número de escrofulosos
em 1056.
As razões que induzem tanta
gente a acreditar nestas e em outras formas terapêuticas, comummente praticadas
em todos os tempos e em todas as épocas, deverão ser, como já o disséramos,
compreendidas numa ótica eminentemente biopsicossociológica. Mas a magia ou
algo semelhante, capaz de gerar esse fascínio, essa fé cega nestas vias de
tratamento, afigura-se-nos, é dentre todas as explicações a que melhor
traduzirá a natural dependência do homem dos seus impulsos ancestrais de índole
pré-racionalista.
Outros aspetos, porém, marcam a
realidade da medicina social contemporânea, ainda bem longe de ser acessível a
todos no início do século XXI.
A cada vez mais utópica
possibilidade da ciência médica estar ao alcance da maior parte da população
planetária (face ao constante aumento demográfico e à penúria social
verificados, sobretudo, no Terceiro Mundo), o elevado grau de tecnicismo médico
e a crescente desumanização da própria medicina conduzem o doente à inevitável
procura de soluções fora do contexto oficial ou convencional.
Em Portugal e, sobretudo, na
região norte do País, onde os recursos sanitários só tardiamente têm vindo a
instalar-se, o doente raramente procura, em primeira instância, o médico de
formação oficial e, quando o faz, já percorreu uma longa trajetória pelos meios
terapêuticos tradicionais em busca de solução para os seus problemas de saúde.
Não confiante e insatisfeito
com o diagnóstico formulado pelo técnico de saúde a que recorreu, desconfiado e
duvidoso relativamente à explicação que procurou obter sobre o seu mal,
claramente desapontado perante o que lhe foi ou não dito, desiludido com esta
consulta, no seu todo, muito aquém das
suas expetativas iniciais, sem o mínimo de convicção para cumprir qualquer
tratamento aconselhado, o indivíduo, enfermo do corpo, do espírito ou do
psíquico, acaba por não considerar, numa próxima oportunidade, a medicina
oficial como uma primeira opção. Ou se gera o necessário elo mágico, verdadeira
empatia que aproxima o médico e o
doente, e este desenvolve ou reforça a sua convicção de que os conselhos e
orientações ouvidos do clínico são de absoluta confiança, a seguir, portanto,
sem hesitação, ou o objetivo resultante desse importante binómio relacional não
se concretiza minimamente. E não é de somenos importância o contacto físico entre o médico e o seu paciente, ansioso, angustiado, receoso, física e psicologicamente fragilizado. Um simples toque do médico, simbolizando conforto, solidariedade, compreensão ou carinho, exercido sobre a mão, sobre o braço ou as costas do doente, pode fazer milagres. O silêncio, a indiferença, a pressa ou a atitude evasiva assumidos pelo médico geram desconfiança e descrença imediatas.
A repetição e a generalização
deste fenómeno de
incompatibilidade entre
médico-doente gera uma espécie rejeição, um mito negativo em torno desse
binómio. E o doente, se até aí tinha débeis convicções sobre o valor das
medicinas alternativas ao seu alcance, volta-se, inevitavelmente, para estas
áreas em busca de melhores respostas para os seus males e dúvidas. E como a
procura acaba por determinar um aumento de oferta, à sua volta vai proliferando
toda uma casta de oficiantes especializados nas demais diversas modalidades
terapêuticas (bruxas, curandeiros, endireitas, etc.), grande parte deles
verdadeiros charlatães sem qualquer preparação técnico-profissional, prontos a
enriquecer à custa da ingenuidade e do sofrimento alheios.
Avassalados pela angústia da
doença, pelas suas "disarmonias" espirituais e psicológicas, os descrentes da
medicina oficial vão encontrar alívio para os seus males de natureza,
predominantemente, psicossomática quando descobrem nestas “modalidades
heterodoxas” de terapia as respostas e a compreensão que não obtiveram nem
poderiam obter junto dos técnicos representantes da ciência médica. A
explicação etiológica e o prognóstico não cruzam, obviamente, com as suas
expectativas e muito menos com conceitos e ideias simplicistas do seu mundo
simbólico, no qual a doença resulta sempre, em primeira análise, da
interferência dos maus-espíritos ou espíritos-ruins. Através de fórmulas
mágicas, de rezas e de exorcismos mais ou menos complicados, a cura pode ser
obtida.
Amuletos e talismãs reforçam a
ação destas práticas virtuosas e dos oficiantes sanadores ou taumaturgos. A
variedade destes objetos resulta, naturalmente, da diversidade conceptual que
cada povo e cultura concebe do seu mundo simbólico e mágico, dimensão
transcendental de onde irradiam forças e agentes capazes de proteger a vida ou
de causar a morte, a doença e a desgraça.
Desde a Pré-história, o homem
tem procurado criar “antídotos”, cujo poder curativo e preventivo é fundamental
para contrariar a ação maléfica das múltiplas entidades, visíveis e e
invisíveis, que deambulam constantemente à sua volta.
No Paleolítico Superior e no
Neolítico, os pedaços de crânio (rondelles)
triangulares ou arredondados retirados nas trepanações efetuadas pelos xamãs-cirurgiões, com vista
a libertar, através de tais orifícios, os seres e forças malfazejos
responsáveis pelo sofrimento do paciente eram, decerto, usados como amuletos e
talismãs frequentemente pendurados ao pescoço, garantindo, deste modo, imunidade
e proteção contra recidivas da doença ou quaisquer outras entidades
perniciosas e perversas.
Mas o próprio ato cirúrgico da
trepanação é executado ainda hoje entre comunidades simples da África Oriental,
seguindo procedimentos e técnicas que em pouco deverão diferir dos processos
seguidos pelos cirurgiões da
Pré-história.
Entre os Kisi, habitantes das
margens do Lago Vitória, conhece-se, desde há muito, a prática da trepanação
como medida terapêutica objetiva decidida e executada em casos de cefaleias
intensas devido a hipertensão intracraniana, de mal-estar, vertigem e vómito
subsequentes a traumatismo craniano, de enxaqueca renitente a todas as formas
de tratamento ensaiadas pela medicina oficial ou tradicional.
Procurados, a maior parte das
vezes e em primeira instância, pelos doentes, os cerca de quatro
“neurocirurgiões” em exercício naquela região, na última década do século XX, eram
responsáveis por uma média de duzentas trepanações/ano.
Apesar da possibilidade de
poderem ser observados e operados em hospitais equipados com tecnologia e
recursos científicos, em cidades próximas, estes pacientes, recorrem,
convictamente, aos local-doctors e,
não raro, acabam por se sujeitar a duas e mais trepanações, mesmo quando, após
uma primeira tentativa, não obtêm quaisquer
melhoras.
Atualmente, e de acordo com as
observações efetuadas pela equipe de especialistas alemães que se deslocou
àquela região de África e ali pôde estudar de perto estas práticas, parece que
o diagnóstico e a terapêutica são estabelecidos tendo em conta a lei causa-efeito.
Deste modo, os fatores sobrenaturais e místicos não condicionarão,
prioritariamente, as decisões médico-cirúrgicas, como terá acontecido durante
os primeiros estádios culturais pré-racionalistas entre as comunidades
pré-históricas. Todavia, a componente mágica não se dissocia completamente do
cerimonial curativo e a sua importância evidencia-se, sobretudo, durante e após
a intervenção, logo que o cirurgião retira o segmento da calote e o encéfalo
fica visível no campo operatório. Nesta altura, sim, não vá o diabo tecê-las,
recitam-se fórmulas mágicas, que são de uma grande eficácia protetora e
impedem, assim, a entrada a qualquer entidade malfazeja através daquele crânio
tão exposto e vulnerável. Enquanto a cicatrização do couro cabeludo não se
processa e a continuidade tecidual não é restabelecida o perigo tem que ser
combatido com a magia.
O que levará,
então, estes doentes a
deixarem-se operar uma
ou mais vezes,
em subcondições higiénicas, com
instrumentos rudimentares (alguns deles, alfaias de cozinha) e, visivelmente,
sem resultados muito animadores, a aferir pela casuística estabelecida a partir
dos dados recolhidos por aqueles cientistas? A crença e a confiança cega na
autoridade e na competência do médico, no poder mágico que ele detém sobre a
saúde e sobre a doença, no seu mana, em suma.
Refletindo ainda, um pouco
mais, sobre a importância simbólica dos objetos usados como protetores de
doença por todas as comunidades, simples ou evoluídas, começaríamos por
retrocessar às sociedades pré-clássicas, aos Babilónios. Entre este povo era
comum o uso de placas com figuras demoníacas, as quais constituíam, de acordo
com os seus conceitos mágico-simpáticos ou homeopáticos, a proteção fundamental
contra os principais responsáveis pelas doenças: os demónios (demónio-febre,
demónio-cefaleia, etc).
O mal protege do mal, o feio protege do feio
Estas e outras crenças de
índole mágica existem e continuarão, decerto, a persistir à nossa volta, como
paradigmas do imaginário primitivo existente em cada um de nós.
Uma infinidade de objetos
mágicos fazem parte do quotidiano de todas as sociedades e não só constituem o
elo de ligação a esse arcaísmo espiritual e psicológico escondido em cada ser
humano, como se revelam fatores harmonizantes dos medos e angústias que povoam
o seu inconsciente.
O rabo e pata de coelho (para
dar sorte), a figa, o chifre, a ferradura, o signo de Salomão (protetor de
homens e animais), medalhas e medalhões com santas e santos, o ramo de oliveira
trazido de Fátima e religiosamente guardado em casa, o terço benzido pelo
sacerdote, pelo bispo ou pelo Santo Padre, as braceletes anti-reumatismais, etc,
são apenas alguns desses objetos.
A fé move montanhas e a verdade
é que alguns doentes, fortemente sugestionados pelos rituais mágicos ou
místicos, pela força medicinal das poções e do diálogo e pelo ambiente
esotérico que se gera durante estes cerimoniais, ou melhoram ou obtêm a cura
definitiva das suas enfermidades.
À luz da ciência médica e de tudo
o que de mais “sagrado” se defende como parâmetro ou princípio regulador da
nobre arte de feição positivista e experimental, tais processos, de cariz
eminentemente pré-racionalista, não devem ser admitidos e os seus propósitos e
técnicas, pretensamente curativos,
devem ser, como tal, repudiados.
No entanto, verifica-se que, sejam quais forem os entraves de ordem política e
legal criados ao exercício destas práticas no seio da sociedade Ocidental, há e
continuará a haver indivíduos que, por não terem acesso à medicina científica
ou por desacreditarem dela, buscam nessas vias alternativas soluções para os
seus males. E quando, por mera coincidência, constatam a sua eficiência, mais
se arreiga e reforça nos seus espíritos a convicção do seu valor e peso
social.. É nessa eficácia, tendencialmente sobredimensionada pelas mentes
simples, sugestionáveis ou ingénuas, que reside a chave da continuidade e
sobrevivência destas práticas marginais à medicina oficial ou convencional. A
dependência que ela (medicina tradicional), inevitavelmente, vai criando
através de alguns êxitos, paradoxal aos olhos científicos, constitui matéria de
estudo e de reflexão para sociólogos, antropólogos, psicólogos e médicos de
reconhecida autoridade no domínio dos fenómenos socioculturais de expressão
tradicional.
Assente em dois princípios
fundamentais (segundo James Frazer, a lei
da semelhança - magia imitativa ou homeopática e lei de contacto ou contágio - que traduz a ação recíproca das
coisas, efetiva mesmo à distância, quando o contacto físico se desfez), a
magia é, para muitos antropólogos, uma
arte e uma ciência.
O igual atrai o igual. O
semelhante produz o semelhante, desde que se acredite.
Esta perspetiva leva-nos à
placebo-terapia, uma questão atual e de múltiplas implicações médicas, em
especial, no foro bioético e deontológico.
Importa, primeiro que tudo,
definir o placebo:
É uma medida terapêutica de
eficácia nula ou fraca, sem relação lógica com a doença, mas com uma ação
curativa real, desde que o indivíduo julgue estar a receber o tratamento
ativo. Esta
reação parece dever-se, apenas, a mecanismos psicológicos ou psicofisiológicos
que se despoletam no indivíduo quando este confia inteiramente no seu médico e
nas suas prescrições.
Ainda que a placebo-terapia
cientificamente orientada possa constituir uma medida polémica, discutível ou
até reprovável sob o ponto de vista ético, os objetivos atingidos, ou seja a
cura, justificam, em muitos casos a sua utilização.
Os resultados obtidos pela
tomada de comprimidos ou pílulas, de soro fisiológico ou de soro glucosado,
comparativamente aos dos fármacos objetivamente indicados e administrados
através de criteriosos protocolos terapêuticos, constituem, algumas vezes, para
os investigadores envolvidos em estudos de cinética e biodisponibilidade
farmacológica autênticas surpresas: grupos de doentes sujeitos a placebos”
revelam, em “ensaios cegos, índices de cura e de melhoria claramente superiores
a outros que tomaram medicamentos de estrutura molecular ativa. Nesta circunstâncias,
é lícito afirmar que a placebo-terapia, desde que criteriosamente estabelecida e
instituída, não só pode resolver, em definitivo, algumas situações de
natureza psicossomática, como poupa o
doente aos riscos de iatrogénese, problema sempre a ter em conta quando se usa
qualquer fármaco.
Mas o placebo, tal como a
definição deixa transparecer, não é apenas um recurso exclusivo do médico. O
cirurgião, também ele pode fazer uso desta modalidade terapêutica. E se a
definição ou clarificação do perfil psicofisiológico e, sempre que possível,
espiritual dos seus doentes é, para o médico, fundamental, para o cirurgião é
de vital importância. A incisão cirúrgica é encarada como uma invasão do “Eu”,
como uma rutura com o mundo real e concreto, a qual pode ser temporária ou
definitiva. J. Sournia pretende mesmo ver, nestes temores exacerbados de cada
ser humano, o regresso dos fantasmas, dos mitos que povoam o mundo mágico da
infância, “o médico que dá picas”, que corta, que pune o paciente porque detém
esse poder e essa autoridade, desde sempre.
O ato cirúrgico gera, inevitavelmente,
temor. E as reações que acompanham este estado de espírito são, muitas vezes,
difíceis de transpor e de controlar, dificultando, não só, a anestesia
preparatória (pelo aparecimento de suores frios, tremores e quadros de distonia
neurovegetativa) como ocasionando graves situações pós-operatórias. Entre estas
últimas contam-se a abulia, a astenia e estados sérios de choque, dos quais,
alguns doentes nunca chegam a recuperar. Compete, assim, ao cirurgião aferir
com rigor o perfil de cada um dos seus pacientes, de modo a prevenir
complicações irreversíveis. Mas esse importante esclarecimento só nos parece
atingível quando a relação médico-doente se estrutura e define segundo uma práxis
verdadeiramente hipocrática, profunda e rigorosa no método, íntima e
humanizada na atitude.
Cabe ao terapeuta o difícil
papel de, com inteligência e arte, estabelecer essa ligação empática e mágica
fundamental.
É evidente que nesse
envolvimento profundo, às vezes quase místico, gerado entre paciente e
cirurgião, criam-se dependências psicológicas algo complicadas. Há mesmo
doentes, especialmente do sexo feminino, que, mercê das suas tendências
masoquistas, se sujeitam a intervenções cirúrgicas sucessivas, mantendo,
permanentemente, as mesmas queixas ou arquitetando outras, refletindo um grau
de histeria hipocondríaca difícil de solucionar por esta ou por qualquer outra
via terapêutica. A placebo-terapia cirúrgica é, no entanto, em alguns casos,
diz-nos Sournia, a única alternativa de tratamento e, embora em confronto com
todos os princípios éticos defendidos pela medicina científica, deve continuar
a ser criteriosamente recomendada e executada.
Assim, por exemplo, uma simples
cicatriz resultante de uma incisão superficial da pele ao nível do apêndice,
desde que o doente tenha sido sujeito ao ritual de uma preparação anestésica e
cirúrgica (aligeirada ou apenas simulada) e acredite ter sido operado e liberto
do seu mal, pode resolver, de vez, as suas queixas de natureza psicossomática,
até aqui renitentes a todos os esquemas terapêuticos ensaiados.
Na verdade, nem um doente deve
ser considerado apenas um ser puramente físico, nem uma intervenção médica ou
cirúrgica pode ser encarada como um ato estritamente mecânico, frio e
desumanizado, nem e a cura resulta somente de uma boa técnica manual ou do
rigoroso cumprimento de formulários ou protocolos terapêuticos. Não! Dependem,
acima de tudo, de uma boa dose de magia e de espiritualidade, geradoras da
empatia determinante do firme desejo de curar e de ser curado, nesse encontro
especial, ainda que fortuito, estabelecido entre o médico e o doente.
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