domingo, 21 de setembro de 2014

Marinho Pinto e o pecado da gula

O eurodeputado Marinho e Pinto, eleito pelo Movimento Partido da Terra (MPT), anunciou que vai criar, a 5 de outubro, um novo partido político  (Partido Democrático Republicano) e prepara-se para formalizar a entrega do respetivo processo no Tribunal Constitucional, solicitando a aprovação dessa pretensão. Para o efeito, conta com apoiantes e simpatizantes nas mais diversas áreas, que ao longo do tempo foram seguindo a sua carreira política, de duração quase meteórica mas, realmente, com algum impacto numa grande fatia da sociedade portuguesa, em particular, naquela que se não identifica com nenhum dos grandes partidos, até agora, com responsabilidade governativa.
A ver vamos se este novo partido encabeçado por Marinho Pinto, consegue reunir as 7 500 assinaturas necessárias à sua definitiva entrada na luta política nacional.
As razões que terão levado o ex-bastonário da Ordem dos Advogados a ponderar sair do MPT e, consequentemente, a abandonar também o seu cargo de ex-deputado do Parlamento Europeu, são diversas, mas, de uma forma geral, identificam-se com o mal-estar, a insatisfação e a repulsa que o estado da nação atingiu, causados por governações incompetentes, suscetíveis de corrupção e de pactuar com múltiplas manobras desonestas e lesivas do erário público. Na sua opinião, o país atingiu um estado caótico retratado pela “degenerescência das instituições democráticas e [pel]o apodrecimento que se verifica em muitas instituições da República”.
Na sua ótica, o novo partido apenas reúne e pretende dar voz a todas as pessoas “inconformadas” que querem “contribuir para uma nova forma de fazer política, com mais honestidade”. 
Portugal e os portugueses, atolados em crise e austeridade e mergulhados na descrença e no desânimo, precisam de uma lufada de ar fresco, mas anseiam, sobretudo, por descobrir arautos que deem asas às suas esperanças e saibam içar de novo, bem alto, a bandeira da liberdade, da honestidade, da retidão e da justiça.
Temos seguido, atentamente, o percurso de Marinho Pinto através da sua quase constante presença na comunicação social, televisiva e jornalística, e por diversas vezes lhe vimos e ouvimos apontar o dedo à imoralidade da carga fiscal, à austeridade que atinge, dolorosamente, a maior parte da população portuguesa, aos baixos salários, ao desemprego que asfixia a Segurança Social e o próprio Estado, às injustiças patentes no fosso que divide os cada vez mais ricos dos cada dia mais pobres. E interroga-se como é que alguém pode sobreviver assim, sem as mínimas condições de sobrevivência, com ordenados miseráveis. E insurge-se contra a exploração a que se sujeitam os jovens licenciados, os que ainda por cá ficam, recebendo pelo seu trabalho autênticas esmolas, abaixo do ordenado mínimo nacional, já de si uma ninharia, a coberto de leis laborais profundamente iníquas e desumanas.
De repente, o sol que iluminava a sua aura resplandecente de valores éticos, morais e altruísticos, o seu sentido de humanidade e de justiça, a sua noção de solidariedade e o seu perfil de paladino, quase utópico, ensombreceu, ofuscado por algumas nuvens negras. Surge-nos com outro discurso.
Quando tantos licenciados, doutorados e técnicos diferenciados nas mais diversas áreas, não imberbes especialistas adjuntos dos senhores Ministros, mas homens de ciência e tecnologia, vivem, algumas vezes, sabe-se lá como, com menos de metade dos vencimentos de qualquer bastonário da Ordem de Advogados, de um qualquer Ministro da República, deputado, administrador ou gestor da coisa pública, Marinho Pinto resolve preocupar-se, não com a triste condição de quem sobrevive com bem menos do que um ordenado mínimo nacional, mas com ele próprio, com a situação de “pobreza” em que se vê, e pior ainda, com os mais afortunados da sociedade portuguesa, que, coitados, não dispõem do suficiente para fazerem face ao custo de vida citadino. Esquece-se, sabe-se lá porquê, de comparar os ordenados mínimos nacionais do Luxemburgo, da Grécia, de França, de Espanha, alguns deles bem superiores aos vencimentos de muitos docentes portugueses, licenciados, mestres e doutorados, que se desunham, estes sim, para poderem garantir a si e aos seus o mínimo de segurança, conforto e bem-estar, nas cidades ou nas vilas onde residem e trabalham. Mas entende e defende, agora, que os deputados, os ministros, o Presidente da República, os magistrados e outros tantos figurões, altamente imprescindíveis e insubstituíveis, muito bem pagos para o que produzem, devam ser aumentados, porque no estrangeiro os vencimentos dos seus homólogos são bem mais generosos. Curiosa forma, esta, de analisar a harmonização e distribuição da riqueza e justiça social e remunerativa propagandeada por Marinho Pinto, o até agora paladino da justiça social!   
Há pouco dias, ouvimo-lo de novo, durante uma entrevista televisiva, pondo a nu e a cru o absurdo e a ofensa que representam os gastos com vencimentos, privilégios, subvenções e mordomias dos eurodeputados, uma tremenda e abjeta carga que nos cai em cima da albarda tributária a todos nós, contribuintes que suportamos esta horda imensa de gente paga a peso de oiro.
Marinho Pinto… e usando palavras suas… considera “escandalosa” esta situação, mas, curiosamente, não se demarcou minimamente desta condição que considera tão aberrante nem faz ou fez questão de abdicar, total ou parcialmente, dessa remuneração… citando-o uma vez mais… tão “imoral”.
Poderia ter sido bem mais inteligente e politicamente correto, se tivesse disponibilizado parte desse absurdo ordenado a qualquer instituição mais carenciada, de crianças órfãs ou de velhos e doentes… a Associação Alzheimer Portugal, por exemplo, apela, nesta altura, a donativos…, mas não. Pensa, contudo, renunciar ao “tacho”, o que lhe fica muito bem, mas não ao apetecido e suculento “recheio” que traz dentro… apesar de o considerar indigesto demais para o seu gosto. 
Tem despesas, tem compromissos financeiros, não pode nem deve abdicar da receita mensal que lhe permite cumprir tais obrigações. Compreende-se. Mas, então, se o ordenado que recebeu de eurodeputado é, na sua opinião, demasiado chorudo, um verdadeiro Euromilhões mensal, porque não reparti-lo com quem precisa?!
Confrontado com a possibilidade de ter um destes gestos magnânimos e filantrópicos, dispensando parte do seu escandaloso vencimento com quem está mais necessitado, Marinho Pinto continuou o seu discurso, contornando o incómodo da pergunta, apontando a indecência de tal remuneração, mas firmemente convicto a não largar um “tusto”. Contribuir para estes peditórios não parece ser a sua especialidade. 
O que lhe terá acontecido para tal falha de argúcia política?!  
Deu um belo tiro no pé, dirão muitos que o ouviram nesta aparente contradição, incoerência ou ingenuidade momentânea. E, na verdade, apesar da grande capacidade retórico-dialética, da frontalidade, da ousadia e da coragem que lhe reconhecemos, patentes nas acaloradas discussões a que já nos habituou, nem sempre irrepreensíveis em termos de diplomacia e linguagem, o novo partido político que ora pretende formar, alicerçado nestas noções de solidariedade e nestes tão discutíveis princípios teóricos de justiça social, sujeita-se a não sair das fundações.    
Pobre rebanho, aquele, que confia no seu pastor e não sabe que também este tem dentes de lobo.       
João Frada