domingo, 27 de outubro de 2013

AGNOSIS

Ontem desfolhei-te,
apressado, entre o possível e o impossível.
Mas não te soube ler,
crente na minha lucidez,
na minha percepção inteligente,
na lógica provável, previsível.

Perspectivei-te
entre o legível e o ilegível,
como se as tuas ideias, todas,
desaguassem num estuário aberto e navegável.
E nada pude ver.
Nem águas, nem margens, nem foz
desse rio que inunda a tua mente.

Entrei em ti.
Mas não vislumbrei nenhum dos teus sentidos.
Não franqueei
a tua dor por dentro das palavras.
Não senti
a solidão nas tuas pálpebras cerradas.
Não pressenti
o teu mundo utópico, irreal.
Não percebi
a ironia dos teus versos delicados.
Não comunguei
do teu sofrimento transbordante.
Não avaliei
a força dos teus gritos sufocados.
Não distingui
nem suplício nem tortura.
Não vi teu desespero impaciente.
Hoje,
alienado e escravo da dor e da loucura,
pude compreender-te, finalmente.

João Frada, Olhos nos Olhos da Alma, Edições CLINFONTUR

O Conceito de Desestruturação Partido-familiar do Presidente da República

Não há razões para lançar a “bomba atómica”, dissolvendo o governo,… dizia há uns tempos Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, no decurso da entrevista em “Prós e Contras”. Talvez tenha razão. 
Há crise social e económica, mas não há crise política. Será que não? Mesmo dentro da coligação?!... esta, que transparece estar cada dia mais frágil, colada com cuspo, mal se aguentando de pé! Paulo Portas, porém, vai-se contentando com uns pirulitos que Passos Coelho lhe oferece, depois de bem regateados.   
Ainda que Paulo Portas, acrobático, inteligente e pragmático como é e sempre foi, a conselho ou não de Sua Excelência, o PR, continue a servir de boia de salvação ao seu parceiro Passos Coelho e a todos os náufragos deste navio tão desmantelado pelo vendaval da crise económica e social em que se tornou o país, a coligação dificilmente não soçobrará. Mas há quem afirme que é só uma questão de tempo e se não for por “bomba atómica”, acabará por ser pelo desgaste e pelos contínuos rombos no casco monetário. A ver vamos.
O PR, assumindo-se como o elemento agregador de todos os portugueses, como garante da estabilidade política do país, defende com a maior das convicções que jamais servirá de elemento “desestruturador” da sociedade a que preside. Desiludam-se os que esperam dele tal missão suicida. Compreendemos e respeitamos a sua postura. Mas apetece-nos dissecar o conceito de “desestruturador” a que se refere. Será que os milhares largos de famílias sem meios de subsistência, sem receitas de emprego para pagarem rendas, para darem comida aos filhos, para custearem minimamente a sua sobrevivência, em risco de despejo ou já despejadas da sua habitação, deprimidas e enlouquecidas pelo sofrimento, caídas ou a caírem na violência física e psicológica (onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão), no divórcio, outras até no crime, já que o roubo e a pilhagem têm aumentado em exponencial, o que é um fenómeno sociológico natural e previsível nestas circunstâncias, vivendo nas malhas da incoesão social e da desestruturação, não devam constituir preocupação para Sua Excelência, o senhor PR?! Ou a sua noção de desestruturação, da qual, frisou, nunca virá a ser o agente responsável, aplica-se apenas à família governamental chefiada por Passos Coelho, com quem se identifica politicamente?! 
Inexoravelmente sujeitos a esta alternância fatal que nos governa, se as eleições legislativas ocorressem nesta altura, antecipadas pela dita “bomba atómica”, seguramente, seria Seguro a governar-nos. Outro socialista. E Sua Excelência, o PR, não gostou do sentido de lealdade do último com quem teve de lidar, Sócrates. Apesar das constantes hesitações e da presidência errática de que o acusam, obviamente, considerações sem fundamento já que é um homem que “nunca se engana e raramente tem dúvidas”, na nossa opinião agiu bem. Preferiu apostar em Passos Coelho. Entre os dois, ambos incapazes de libertar o país da profunda crise financeira, económica e social em que se encontra, do mal o menos, escolheu o que melhor serve os interesses do seu clã político. Apesar de presidir a uma sociedade cada vez mais desestruturada, é melhor que a oposição se desiluda. O PR, cansado de ser constantemente alvejado por snipers políticos do PS, Sócrates, Mário Soares, Seguro, etc, pode ter ainda “raras dúvidas”, como ele próprio afirma, mas DESESTRUTURAÇÕES pela sua mão, dando a governação de bandeja aos socialistas, ISSO, NUNCA.   

João Frada
Professor Universitário
Lisboa, 11.09.13

Um País de Desertos e Camelos

Num país de ficção, onde cerca de 10 milhões de camelos vagueiam em busca, não de oásis, que desapareceram há muito perto do mar, longe do mar, no norte, no sul, no centro, mas de catos, de arbustos rasteiros, de erva rala, restos que sobram da fartura de outros tempos, nessa jornada sem futuro nem meta de chegada, quantos vão ficando pelo caminho, trôpegos e desgastados pela marcha cada dia mais penosa, envelhecidos pela idade e sem fim à vista, uma verdadeira cáfila condenada à anomia e ao extermínio, porque os mais capazes e prolifícos vão rumando a outras paragens fora de portas, amarrando-se definitivamente a outros espaços e a outras rotas mais aliciantes, e os que por cá ficaram, pasto de feras esfomeadas que os rondam dia e noite, não têm tempo nem condições para renovar a espécie, nada que lhes garanta o mínimo de segurança, alimentação e saúde, nem para si nem para outros camelos, seus vindouros. 
Milhares de camelos, machos e fêmeas, instruíam, educavam e preparavam os mais novos para as longas jornadas dentro e fora dos desertos, mas os cameleiros, cada vez mais ausentes das suas funções, corrompidos pela usura e pela ganância, bem diferentes dos cameleiros de outros tempos, pouco se ralam em renovar a cáfila…e os pastos garantidos a quem já não tem dentes nem para ruminar e as múltiplas missões traçadas e ensinadas aos mais jovens estão destinados a perder-se, definitivamente, nos desertos da memória. No meio de tantos cameleiros, que de tanto lidar com camelos viraram, não camelos, pasme-se, mas burros no sentido popular do termo, ainda houve um “iluminado”, crente nos oásis, que ponderou premiar o nascimento de camelos,  mas ficou-se por aí. Não passou de uma efémera intenção. Os burros que se lhe seguiram preocupam-se com outros défices, não com a manada; essa, ainda que reduzida, serve os seus propósitos.
Um país sem horizontes,  com milhões de camelos envelhecidos, cansados de ser albardados, chicoteados, sangrados e vendidos, e sem camelos novos para troca de montadas, é uma pobre “caravana” condenada à extinção.  
    
João Frada
Professor Universitário
Lisboa, 16.08.13