terça-feira, 30 de dezembro de 2014

DIÁLOGO ENTRE A MEDICINA, A HISTÓRIA E O FUTURO

DIÁLOGO ENTRE A MEDICINA, A HISTÓRIA E O FUTURO 
 
Lucien Febvre, figura marcante da primeira metade do século XX, é ainda hoje considerado, pela maioria dos historiadores contemporâneos, como um pioneiro da Historiografia Moderna. Construir e compreender a realidade histórica passa, na sua ótica, pelo estudo da realidade social, considerada quer nas suas particularidades quer no seu todo. Atingir essa perspetiva globalizante e, ao mesmo tempo, multifacetada, só é possível, defende este autor, através de um  esforço científico interdisciplinar e conjugado. É nessa participação que Lucien Febvre vê a “fórmula do futuro” para a História. Por outro lado, posicionando-se como anti-futurista, o autor não acredita que as máquinas do futuro possam vir a substituir o “homem”, enquanto construtor da História.
Esta reflexão sobre o pensamento de Lucien Febvre, patente no seu estudo (“Exame de Consciência de Uma História e de um Historiador” In Combates pela História I ),  é, quanto a nós, um exercício intelectual interessante, uma vez que nos permite  confrontar duas atitudes distintas do mesmo autor: o espírito inovador aberto a novas formas, concretas e reais, de “fazer História” e a posição conservadora e de rejeição relativamente aos progressos tecnológicos do futuro aplicados a esse mesmo processo. O “homem”, enquanto agente da construção histórica é e será sempre, no seu entender, insubstituível. Nenhuma máquina assumirá, na plenitude, o seu papel enquanto agente historiográfico. No século XX, Lucien Febvre abriu, definitivamente, o caminho a esta discussão – dos rumos da História, do “homem” e da “máquina”, enquanto elementos estruturantes e/ou determinantes do processo histórico.
Confrontados agora, no início do século XXI, com sofisticados métodos e técnicas de engenharia biomédica e avanços consideráveis no domínio da astrofísica, que  permitem pôr em causa muitas certezas do presente e lançam sérias inquietações sobre o futuro, a Sociedade e o Homem precisam, realmente, de se situar e de encontrar novas formas de inter-relação, neste paradigma histórico pleno de  receios, dúvidas e contradições.
A neo-historiografia e Lucien Febvre darão, ou deram já, lugar a diferentes correntes e formas de pensar e de escrever a História ou, pelo contrário, imutáveis no método e nos processos hermenêuticos,  continuam modelos atualizados e coerentes em relação à realidade atual?
São estas interrogações que nos motivaram a proceder a este trabalho de análise e reflexão crítica, dissecando a opinião e as ideias de Lucien Febvre e contrastando-as com novos conhecimentos, descobertas e experiências nos domínios da  Física e das Ciências Biomédicas. 
Não rejeitando a “História feita com textos (1), fórmula célebre que esteve (e está) subjacente ao trabalho de elaboração histórica positivista, Lucien Febvre disserta sobre as conotações dessa frase, paradigma, no fundo, da linha historiográfica que o antecede. Nessa historiografia que critica, a História e a escrita aparecem indissociáveis, como se o “homem” pré-Herodotiano estivesse arredado da cultura histórica. A Pré-História, sem textos, encerra efetivamente o período mais longo da existência do “homem” cultural. A “exumação” desta enorme lacuna no conhecimento “histórico”, sem recorrer a textos, criaria no entanto importantes recursos, não menos eficientes e reveladores da inesgotável “face escura” da Humanidade – a Pré-História. E, desse esforço, resultariam novas perspetivas e tecnologias, capazes de desnudar o “homem” histórico de uma outra forma, mais real e humanizada, jamais pressentida através de textos.
A História Económica, a História das Técnicas, a Geografia Humana, a Estatística, a Demografia, a Linguística, complementares da Antropologia, da Arqueologia, da Paleoantropologia e da História da Medicina, fariam pouco a pouco a sua aparição. Do seu esforço conjunto, resultaria uma nova possibilidade de abordagem historiográfica. O “homem” histórico e pré-histórico aparecem cada vez mais próximos e melhor identificados na sua realidade cultural e existencial.
Lucien Febvre, através desta nova maneira de encarar e descobrir o “homem” do passado, procurou demonstrar o obsoleto que existe na posição positivisto-romântica da História.
Historiografia assente apenas em “palavras, datas, nomes de lugares e homens” (2), eis a preocupação do historiador durante séculos. A Universidade, mesmo nos países intelectualmente mais diferenciados como a França, contentava-se com críticas de textos, desde que abrilhantados por uma eloquente dialética, ainda que as questões observassem superficialidades ou assuntos comezinhos sobre a vida deste ou daquele rei, príncipe ou fidalgo. Curiosamente, ainda hoje, alguns diletantes menos preparados e familiarizados com os novos métodos historiográficos, convictos, na sua ingenuidade, de que “de historiador e louco todos têm um pouco”, entregam-se a missões de historiografia elementar de feição romântica, apenas alicerçados nas velhas fórmulas de fazer História identificadas com listagens de palavras, datas, números, nomes de lugares e homens.  Em nossa opinião, porém, estas referências, embora devam ser consideradas tentativas simplicistas de fazer História, podem constituir achegas importantes para o historiador, desde que entendidas num contexto sociológico global, explicado e compreendido à luz das várias disciplinas subsidiárias da Moderna Historiografia. É essa exigência que marca a diferença. A Demografia, a Estatística, a Epidemiologia, a Antropologia, a Sociologia e outras tantas ciências terão sempre que se pronunciar sobre as razões dos factos e fenómenos históricos e sociais. 
A nova atitude historiográfica, defendida L. Febvre, seleciona os elementos históricos e pretende assim compor a História (que considera, sempre, incompleta) dos homens, dos tempos e lugares. A procura dos elementos rejeitados por  aqueles  que   procederam   àquele   joeirar  tão  ignorante  e  descuidado  (pré-determinado e premeditado algumas vezes), aliada a factos aparentemente superficiais e sem valor, virá a possibilitar a reconstrução da História, mais completa e verdadeira. O puzzle histórico tornar-se-á mais fácil de resolver e, assim, o “homem” compreender-se-á melhor.
Da investigação apurada dos historiadores, do seu trabalho paciente e judicioso, das hipóteses e conjeturas levantadas, das leis gerais traçadas a partir dos factos agora mais claros e inteligíveis, cria-se uma nova História e um novo conceito do “homem” histórico e cultural.
Todavia, “sem teoria não há História(3). Não se deva empolar demasiado o papel desta nova filosofia historiográfica, defendida por L. Febvre, identificada com os Annales.Esta, linha neo-positivista que sobrevaloriza e mitifica o instrumento” (4), secundarizando a teoria, não pode nem deve querer substituir todos os outros métodos, qualquer deles participantes da fundamental importância na reconstituição histórica.
Na 1ª parte do Capítulo I da obra citada (Combates pela História I), o autor estabelece alguns comentários sobre os dois princípios básicos do pensamento positivista: “não formular hipóteses (hypotheses non fingo) e não escolher factos”, condições fundamentais a ter em conta pelos historiadores seus doutrinários.
Criticando posições que considera erradas e limitativas à investigação e ao avanço do conhecimento histórico (como aliás, das demais ciências), L. Febvre toma como exemplo o trabalho do histologista e, nesta circunstância, observando os procedimentos metodológicos de uma disciplina científica exata, compara os métodos histológico e historiográfico, colocando indiscutivelmente a História ao mesmo nível. De uma forma indireta, este historiador considera esta área do conhecimento como uma ciência, estatuto, este, que nem todos os investigadores lhe reconhecem.
Lucien Febvre defende uma História assente no esforço científico inter-disciplinar. O trabalho individual (que caraterizou, durante décadas, o processo de investigação histórico e sociológico) considera-o artesanal e sem a eficácia que a concordância e cooperação científica e humana poderá propiciar. É nesta conjugação de esforços especializados, nesta participação comum, que L. Febvre vê a “fórmula do futuro” para a História (5).
Com a complexização dos conhecimentos e das técnicas, forçosamente, consegue-se (e tem-se conseguido) penetrar a intimidade mais profunda dos fenómenos sociais, desde os mais ínfimos aos de maior significado, todos eles elementos identificativos e constituintes da mesma construção, da mesma História. Os textos, por exemplo, para além da sua carga escrita, melhor ou pior interpretada pelo investigador, possuem tantas vezes informações subjetivas, impercetíveis pelos métodos de análise a que são sujeitos. A partir da sua natureza material, por exemplo, quantas informações, dúvidas, mistérios, pistas, conjeturas se podem levantar ou formular!
A análise de matérias, hoje possível e atingindo um rigor considerável, apoio importantíssimo para os paleógrafos, através do estudo das tintas, do papel e carateres, permite compreender melhor os factos ou passos históricos que a eles se prendem ou relacionam. Deste modo, a História é sempre uma ciência inacabada. Longe de resolver completamente os seus enigmas e cristalizar na descoberta a sua ação, a História (não conformista), despoleta questões continuamente, permitindo-nos, decerto, aproximar da verdade um pouco mais e criando, ao mesmo tempo, novas dúvidas.
História “uma ciência com leis”, admite L. Febvre, desde que essas leis não constranjam a ação, sirvam apenas para agrupar e relacionar “factos até então separados” e, desta forma a tornem também “numa unidade viva da ciência”. A problemática atual da História é promover o acordo entre o institucional e o contingente (6).
Se tomarmos à letra a palavra “contingente”, que significa, entre muitas coisas, o que pode ou não acontecer, cabem nesta definição “o possível e o impossível. Ainda que aparentemente pareça só tratar-se de um problema dialético ou filosófico, vamos tentar analisar a posição de L. Febvre, em relação a este aspeto.
Este autor, identificado naturalmente com a sua época, a qual nos aparece de certo modo limitada ainda pelos impossíveis (1ª metade do século XX), adianta-se ao pensamento do seu tempo, quando nos diz acreditar nos “progressos que hão de vir de outras ciências” (7), subsidiárias da História, cuja acção permitirá uma melhor interpretação e conhecimento do passado. Todavia, não concebe que, no futuro, o “homem” possa vir a dispor de um aparelho, “impossível de encontrar”, capaz de fazer ouvir ou reproduzir “depois de um sono de séculos”, fielmente registada para a eternidade, “a própria voz do passado captada ao vivo” (8)..
L. Febvre, um verdadeiro inovador, um historiador progressista para a sua época, adepto de uma historiografia em novos moldes, não consegue admitir, pela sua própria formação (com algum tradicionalismo cultural), a História revolucionada pelas técnicas do futuro (9).
As teorias e os conceitos dogmáticos da Escolástica Medieval encontraram a sua rutura na racionalidade moderno-contemporânea.
No campo fenomenológico, Newton lançou o desafio, criando um pensamento novo e, durante séculos, foram inabaláveis as suas teorias.
Alguns séculos depois, Maxwell, Hertz e Augustin-Jean Fresnel, este último relativizando os conceitos de Newton no campo da Física, abalaram novamente o Mundo. Os dogmas ruíram uma vez mais.
Não há verdades universais, nem impossíveis. O impossível de hoje é o possível de amanhã.
Einstein, marcando uma completa viragem no pensamento científico, reformularia outras tantas verdades aparentemente indestrutíveis. Segundo ele, os fenómenos jamais poderão voltar a reproduzir-se (para tempos diferentes), ou seja, a História é irreversível. No entanto, a impossibilidade de recriar o acontecimento, não implica que se não possa reconstruir o facto histórico, a partir de múltiplas informações gravadas, por exemplo, no subconsciente ou, quem sabe, no inconsciente coletivo.
Os nossos sentidos captam e, aqui mesmo, começa a subjetividade do real. A interpretação e a integração do fenómeno são ambas operações de caráter parcial, ainda que sirvam suficientemente para a sua inteligibilidade. Nessa medida, pode reconstruir-se o facto histórico, mas a própria natureza humana, limitada e subjetiva, não oferece grande fiabilidade e rigor como testemunho desse registo.
Com a Física Quântica oscilaria novamente o que parecia definitivo e estável e, nessa medida, mesmo algumas ideias de Einstein acabariam por se tornar parcialmente desajustadas à explicação de certos fenómenos, encarados num outro âmbito de crescente complexidade.
À luz dos conhecimentos atuais, os fenómenos de premonição ou descrições mais ou menos exatas de passados longínquos, em que o contacto físico e consciente dos relatores está fora de questão, têm preocupado muitos cientistas. As propostas explicativas são múltiplas, onde se entrecruzam as ciências biomédicas, a metafísica, a psicanálise e a parapsicologia.
Com a hipnose, tem-se alargado o conhecimento do nosso subconsciente. A quantidade de impressões retidas, não sujeitas à discriminação do consciente, é espantosa. Através desta técnica de sugestão constroem-se etapas da vida do “homem”, aclaram-se lacunas da sua identidade, traçam-se aspetos da sua história remota pessoal. Reconstituem-se, a partir desse profundo arquivo subconsciente, circunstâncias, factos e fenómenos presenciados tantas vezes dum modo desinteressado e vago. Mas os sentidos humanos captaram o fenómeno, o facto foi presenciado sem se dar por isso, a imagem do pequeno pormenor reteve-se na retina e a gravação não discriminada, sem passar pela consciência, processou-se. Por meio da hipnose, seriamente conduzida, os resultados obtidos nestes casos são espetaculares.
O cérebro continua misterioso e ainda incompreensível em muitas das suas funções, mas não é intransponível, nem impenetrável.
Será que esses milhares de milhões de informações conscientes, subconscientes, objetivas, subjetivas, electroquimicamente armazenadas no cérebro, poderão algum dia vir a ser reproduzidas, como se processa num filme? A historiografia do tempo social ou tempo médio beneficiaria, sem dúvida, com tal possibilidade. As fontes vivas, os homens participantes diretos nos fenómenos, enriqueceriam a construção da História com as suas preciosas informações arrancadas desses arquivos da mente, por ora, ainda tão inacessíveis.
O conhecimento científico e tecnológico tem avançado nos últimos 60 anos de uma forma meteórica. E, afirmamo-lo uma vez mais, assistimos dia após dia à destruição de impossíveis, apenas viáveis no domínio da ficção e da utopia.
Poder-se-á algum dia falar de memória cultural de transmissão genética? Servirá ela para a reconstrução da História? Se assim for, de que via catártica iremos precisar? Da mística, da parapsicologia, da ciência, de todas elas?
locus de memória aparentemente transmissíveis e a ciência começa a encarar este fenómeno com bastante seriedade. A  etiologia experimental deu já alguns passos significativos para a sua comprovação (10).
Passam-se, de geração em geração, informações que consideramos responsáveis por uma memória coletiva biológica. Isto, é indiscutível. Será que os genes, capazes de reter impressões e carateres biológicos, transmissíveis ao longo de gerações, não possuem também elementos de memória individual ou coletiva de ordem cultural? Admitindo que sim, como se explica que o comum dos mortais não dê por isso? Será que essa eventual memória poderá, mesmo, ficar acessível através de técnicas e/ou fármacos? Porque não acreditar que o cérebro, reunidos os fatores adequados, pode um dia disponibilizar-nos semelhante informação? A predisposição genética de um indivíduo a determinadas doenças, hoje indiscutível à luz da medicina preditiva ou predizente, não determina obrigatoriamente que tais patologias se manifestem durante a sua vida, a menos que se reúnam condições favoráveis ou o “terreno” apropriado. A memória genética foi ativada por determinado fator ou circunstância e o organismo reproduziu a “doença herdada da família”.
Como explicar também a capacidade, que já foi reconhecida em algumas pessoas, de regressar a um passado remoto, aquém da sua própria existência física, por vezes, relembrando como que vivências anteriores, sob a influência da hipnose? Onde se processou (processa) este arquivo de memória? E como se transmitiu?
Refletir sobre tais questões será enfermar de ingenuidade, de imaginação criadora exacerbada, de tendência especulativa da utopia e do fantástico? Admitamos. Nada aqui encontramos de exatidão experimental e científica. Ademais, as escolas e os homens que representam os valores mais elevados do conhecimento e da cultura têm habitualmente um certo receio de aderir claramente a tais ideias e assuntos. E, assim, raramente a ciência anda ligada a estas matérias. Os seus adeptos, mesmo quando destacadas figuras do mundo científico, não encontram via fácil para tais especulações e reflexões consideradas pela ortodoxia, em todas as épocas, verdadeiras ousadias, anátemas a combater e a punir. Deste modo, ou calam os resultados dos seus estudos ou sofrem as naturais repercussões, quando se atrevem a proferir tais heresias.
Mas, até hoje, onde e quando é que a inovação é ou foi logo (bem) aceite ? Se não fosse o pensamento ousado de Hipócrates, bem heterodoxo para o seu tempo, a genialidade dos pensadores proto-cientistas da Época Moderna, em particular do Renascimento, e o espírito insatisfeito e prático de Robert Koch, Pasteur, A. Fleming e de tantas outras figuras da contemporaneidade, a medicina, tal como outras áreas do conhecimento, dificilmente se dissociaria de influências pré-racionalistas, crenças, superstições e bizantinismos de cariz medieval. O sonho, a ousadia, o sentido crítico, a insatisfação, a dúvida metódica, a genialidade e a fé têm feito avançar o Mundo. Neste permanente processo de revisão, de procura e de mudança, as ciências nada têm de estável ou absoluto e todas elas não passam de oposições, conflitos, antinomias, avanços, recuos, certezas lógicas hoje, erros absurdos amanhã (11).
Na verdade, se temos que acreditar em algo, acreditemos hoje que seremos capazes de pôr em dúvida amanhã; senão, poderemos ser ultrapassados pelo futuro.
Lucien Febvre,  homem de espírito não hermético às inovações, parece no entanto não entender que essa mesma ciência que apregoa, transpondo, uns após outros, graus sucessivos de conhecimento, é castrada à partida pela sua atitude pouco futurista. Limita-lhe o “desejo insaciável de alargar o horizonte” (12), esse mesmo desejo que poderá vir a ser a chave mestra com que se abrirão os impossíveis, com a qual se poderá também reconstruir a História.
O “homem” jamais virá a dispor de “aparelho, impossível de encontrar”, capaz de registar “a própria voz do passado captada ao vivo”, diz L. Febvre. Para construir “o passado de que tem necessidade” (13), o “homem” deverá contar apenas com o seu trabalho mental. Não deverá, pois, esperar que máquinas ou outros meios utópicos possam vir a estar ao seu alcance para a recriação fiel desse passado. Lucien Febvre parece rejeitar, liminarmente, a inovação e o incontestável desenvolvimento no domínio das técnicas e instrumentos mas, ele  próprio, um “cientista” do século XX, atento aos grandes avanços e descobertas do seu tempo, deixa antever nas suas ideias e em alguns dos seus escritos as tremendas possibilidades que a evolução científica e tecnológica poderá trazer à História.
Convictos de que estas últimas reflexões sobre as ideias de Lucien Febvre poderão vir a compreender-se um pouco melhor, se tivermos em conta outras achegas favoráveis a este diálogo científico, propomo-nos analisar algumas transcrições da obra do eminente astrofísico John Gribbin, “À procura do gato de Schrodinger”, trabalho considerado muito válido no âmbito da Física Quântica, hoje, uma área científica com um alcance ainda insuspeitado.
Segundo a relatividade de Einstein, “a marcha de um relógio é tanto mais lenta quanto mais depressa este se move. À velocidade da luz o tempo pára. Ora um fotão desloca-se à velocidade da luz. Isto significa que para um fotão o tempo não tem significado”…, “viajar no tempo, não significa nada para um fotão(...)”14). As “equações da relatividade permitem viajar  no tempo,  e isto  pode  ser  percebido  com  facilidade  através de diagramas espácio-temporais”. O método para viajar no tempo “envolve uma distorção local da estrutura espácio-temporal, de tal maneira que nessa região, o eixo do tempo, tem a direcção de um eixo do espaço na região não distorcida. Uma das direcções espaciais desempenha o papel de tempo e esta troca entre espaço e tempo permite viajar no tempo”. Esta ideia encontra já a possibilidade teórica de concretização, de acordo com os cálculos realizados pelo matemático americano Frank Tipler (15).
A viagem no tempo verdadeira pode não ser impossível mas sim muito difícil e muito, muito improvável. Contudo, isto torna aceitável a viagem no tempo ao nível quântico. Quer a teoria quântica, quer a teoria da relatividade permitem, de uma forma ou de outra, viajar no tempo. E tudo o que é aceitável segundo estas duas teorias, por mais paradoxal que se apresente, deve ser levado a sério. E, na verdade, viajar no tempo é um dos aspectos mais estranhos do mundo das partículas, onde é possível tirar algo do nada, se se for suficientemente lesto.” (16).
E se estes impossíveis se tornarem realidades, o que será da História no futuro?
Estará o “homem” realmente perto do cimo, “de onde se veria a aurora surgir do crepúsculo”(17), ou  continua  na  base  da  montanha”, acabando  de  entrar  agora  na  Pré-História planetária?? “A ciência, em vez de ser o foco da nova consciência, contribui para o novo obscurantismo” (18).
O “homem” marcha a passos largos rumo à complexidade. Quais os seus limites, qual a sua meta? Será ele capaz de compreender a complexidade que criou, para poder continuar o trabalho histórico? E, nos seus “Combates pela História”, saberão os futuros historiadores encontrar o(s) método(s) adequado(s) ao exercício da sua atividade, nessa complexidade crescente e imparável, ou não irá a ciência histórica poder acompanhar o próprio homem?
 
Notas e Referências Bibliográficas
 
1. FEBVRE, Lucien ― Exame de Consciência de Uma História e de Um Historiador. In FEBVRE, Lucien ―  Combates pela História I. Lisboa: Editorial Presença, 1977, p. 19.  (Biblioteca das Ciências Humanas)
2. Idem, p. 22.
3. FONTANA i LÁZARO, J. ― Ascensão e decadência do Annales apud MENDES, José M. Amado ― A História como Ciência: Fontes, Metodologia e Teorização. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 78.
4. Idem, ibidem
Este movimento historiográfico, constituído em torno do periódico francês Annales d´histoire économique et sociale, carateriza-se pela incorporação de métodos das Ciências Sociais aplicados à História.
5. FEBVRE, Lucien ― Op. Cit. p. 32.
6. Idem, p. 33-35.
7. Idem, p. 33.
8. Idem p. 34.
9. Voltaire, já em meados do século XVIII defendia uma História de todos os homens e não, unicamente, de reis e privilegiados. A História económica, demográfica, das técnicas e dos costumes, deveria substituir a estritamente política, militar ou diplomática.
10. Grupos de várias gerações de ratinhos (animais de laboratório), são sujeitos à seguinte experiência: para atingirem a comida têm de passar por um labirinto complicado. Os descendentes de 1ª geração dos ratos que,  após algumas tentativas, haviam conseguido o objetivo, chegam também ao alvo com um menor número de tentativas, quer em relação aos próprios pais, quer em relação a outros, filhos de ratos que mais dificilmente lá chegaram ou não conseguiram mesmo os seus intentos, no tempo determinado. Os descendentes de 2ª geração dos ratinhos mais aptos continuam a manifestar uma maior capacidade que os seus antecedentes, diminuindo, em alguns casos, consideravelmente, o número de vezes necessárias para chegar à comida. Os labirintos, embora iguais, são mudados permanentemente, para obviar os cheiros. Estar-se-á perante uma transmissão experiencial genética? De acordo com os conceitos atuais de genética, é altamente improvável que em tão pouco tempo se tenha verificado uma mutação responsável por tal diferenciação de comportamento. Então como se transmitirá, efetivamente, esta aparente informação? Deixemos às Neurociências essa reflexão.
11. FEBVRE, Lucien ― Op. Cit.  p. 35.
12. Idem, p. 36.
13. Idem, p. 35.
14. GRIBBIN, John ― À Procura do Gato de Schrodinger: A Física Quântica e sua influência no Mundo Atual. Lisboa: Editorial Presença, 1984, p. 133.
15. Idem, p. 135.
16. Idem, p. 136.
17. FEBVRE, Lucien ― Op. Cit. p. 36.
18. MORIN, Edgar ―  O Método II: A vida pela vida. Lisboa: Publicações Europa-América, 1980, p. 418. (Biblioteca Universitária)