DIÁLOGO
ENTRE A MEDICINA, A HISTÓRIA E O FUTURO
Lucien
Febvre, figura marcante da primeira metade do século XX, é ainda hoje
considerado, pela maioria dos historiadores contemporâneos, como um pioneiro da
Historiografia Moderna. Construir e compreender a realidade histórica passa, na
sua ótica, pelo estudo da realidade social, considerada quer nas suas
particularidades quer no seu todo. Atingir essa perspetiva globalizante e, ao
mesmo tempo, multifacetada, só é possível, defende este autor, através de
um esforço científico interdisciplinar
e conjugado. É nessa participação que Lucien Febvre vê a “fórmula do futuro”
para a História. Por outro lado, posicionando-se como anti-futurista, o autor
não acredita que as máquinas do futuro possam vir a substituir o “homem”,
enquanto construtor da História.
Esta
reflexão sobre o pensamento de Lucien Febvre, patente no seu estudo (“Exame de
Consciência de Uma História e de um Historiador” In Combates pela História I ), é,
quanto a nós, um exercício intelectual interessante, uma vez que nos
permite confrontar duas atitudes
distintas do mesmo autor: o espírito inovador aberto a novas formas, concretas
e reais, de “fazer História” e a posição conservadora e de rejeição
relativamente aos progressos tecnológicos do futuro aplicados a esse mesmo
processo. O “homem”, enquanto agente da construção histórica é e será sempre,
no seu entender, insubstituível. Nenhuma máquina assumirá, na plenitude, o seu papel enquanto agente historiográfico. No século XX, Lucien Febvre abriu, definitivamente,
o caminho a esta discussão – dos rumos da História, do “homem” e da “máquina”,
enquanto elementos estruturantes e/ou determinantes do processo histórico.
Confrontados
agora, no início do século XXI, com sofisticados métodos e técnicas de engenharia
biomédica e avanços consideráveis no domínio da astrofísica, que permitem pôr em causa
muitas certezas do presente e lançam sérias inquietações sobre o futuro, a
Sociedade e o Homem precisam, realmente, de se situar e de encontrar novas formas de inter-relação, neste paradigma histórico pleno de receios, dúvidas e
contradições.
A
neo-historiografia e Lucien Febvre darão, ou deram já, lugar a diferentes correntes
e formas de pensar e de escrever a História ou, pelo contrário, imutáveis no método e nos processos hermenêuticos, continuam
modelos atualizados e coerentes em relação à realidade atual?
São estas
interrogações que nos motivaram a proceder a este trabalho de análise e
reflexão crítica, dissecando a opinião e as ideias de Lucien Febvre e
contrastando-as com novos conhecimentos, descobertas e experiências nos
domínios da Física e das Ciências
Biomédicas.
Não
rejeitando a “História feita com textos” (1), fórmula célebre que esteve
(e está) subjacente ao trabalho de elaboração histórica positivista, Lucien
Febvre disserta sobre as conotações dessa frase, paradigma, no fundo, da linha
historiográfica que o antecede. Nessa historiografia que critica, a História e
a escrita aparecem indissociáveis, como se o “homem” pré-Herodotiano estivesse
arredado da cultura histórica. A Pré-História, sem textos, encerra
efetivamente o período mais longo da existência do “homem” cultural. A
“exumação” desta enorme lacuna no conhecimento “histórico”, sem recorrer a textos, criaria no entanto importantes
recursos, não menos eficientes e reveladores da inesgotável “face escura” da Humanidade – a
Pré-História. E, desse esforço, resultariam novas perspetivas e tecnologias,
capazes de desnudar o “homem” histórico de uma outra forma, mais real e
humanizada, jamais pressentida através de textos.
A História
Económica, a História das Técnicas, a Geografia Humana, a Estatística, a
Demografia, a Linguística, complementares da Antropologia, da Arqueologia, da
Paleoantropologia e da História da Medicina, fariam pouco a pouco a sua
aparição. Do seu esforço conjunto, resultaria uma nova possibilidade de
abordagem historiográfica. O “homem” histórico e pré-histórico aparecem cada
vez mais próximos e melhor identificados na sua realidade cultural e existencial.
Lucien
Febvre, através desta nova maneira de encarar e descobrir o “homem” do passado,
procurou demonstrar o obsoleto que existe na posição positivisto-romântica da
História.
Historiografia
assente apenas em “palavras, datas, nomes de lugares e homens” (2),
eis a preocupação do historiador durante séculos. A Universidade, mesmo nos
países intelectualmente mais diferenciados como a França, contentava-se com
críticas de textos, desde que abrilhantados por uma eloquente dialética, ainda
que as questões observassem superficialidades ou assuntos comezinhos sobre a
vida deste ou daquele rei, príncipe ou fidalgo. Curiosamente, ainda hoje,
alguns diletantes menos preparados e familiarizados com os novos métodos
historiográficos, convictos, na sua ingenuidade, de que “de historiador e louco
todos têm um pouco”, entregam-se a missões de historiografia elementar de
feição romântica, apenas alicerçados nas velhas fórmulas de fazer História
identificadas com listagens de palavras, datas, números, nomes de lugares e
homens. Em nossa opinião, porém, estas
referências, embora devam ser consideradas tentativas simplicistas de fazer
História, podem constituir achegas importantes para o historiador, desde que
entendidas num contexto sociológico global, explicado e compreendido à luz das
várias disciplinas subsidiárias da Moderna Historiografia. É essa exigência que
marca a diferença. A Demografia, a Estatística, a Epidemiologia, a
Antropologia, a Sociologia e outras tantas ciências terão sempre que se
pronunciar sobre as razões dos factos e fenómenos históricos e sociais.
A nova
atitude historiográfica, defendida L. Febvre, seleciona os elementos históricos
e pretende assim compor a História (que considera, sempre, incompleta) dos
homens, dos tempos e lugares. A procura dos elementos rejeitados por aqueles
que procederam àquele
joeirar tão ignorante
e descuidado (pré-determinado e premeditado algumas
vezes), aliada a factos aparentemente superficiais e sem valor, virá a
possibilitar a reconstrução da História, mais completa e verdadeira. O puzzle histórico tornar-se-á mais fácil
de resolver e, assim, o “homem” compreender-se-á melhor.
Da investigação apurada dos historiadores, do
seu trabalho paciente e judicioso, das hipóteses e conjeturas levantadas, das
leis gerais traçadas a partir dos factos agora mais claros e inteligíveis,
cria-se uma nova História e um novo conceito do “homem” histórico e cultural.
Todavia, “sem teoria não há História” (3). Não se deva empolar
demasiado o papel desta nova filosofia historiográfica, defendida por L.
Febvre, identificada com os Annales.
“Esta, linha neo-positivista que
sobrevaloriza e mitifica o instrumento” (4), secundarizando a teoria, não
pode nem deve querer substituir todos os outros métodos, qualquer deles participantes
da fundamental importância na reconstituição histórica.
Na 1ª parte
do Capítulo I da obra citada (Combates pela História I), o autor estabelece alguns comentários sobre os
dois princípios básicos do pensamento positivista: “não formular hipóteses (hypotheses non fingo) e não escolher factos”,
condições fundamentais a ter em conta pelos historiadores seus doutrinários.
Criticando
posições que considera erradas e limitativas à investigação e ao avanço do
conhecimento histórico (como aliás, das demais ciências), L. Febvre toma como
exemplo o trabalho do histologista e, nesta circunstância, observando os
procedimentos metodológicos de uma disciplina científica exata, compara os
métodos histológico e historiográfico, colocando indiscutivelmente a História
ao mesmo nível. De uma forma indireta, este historiador considera esta área do
conhecimento como uma ciência, estatuto, este, que nem todos os investigadores
lhe reconhecem.
Lucien
Febvre defende uma História assente no esforço científico inter-disciplinar. O
trabalho individual (que caraterizou, durante décadas, o processo de
investigação histórico e sociológico) considera-o artesanal e sem a eficácia
que a concordância e cooperação científica e humana poderá propiciar. É nesta
conjugação de esforços especializados, nesta participação comum, que L. Febvre
vê a “fórmula do futuro” para a
História (5).
Com a
complexização dos conhecimentos e das técnicas, forçosamente, consegue-se (e
tem-se conseguido) penetrar a intimidade mais profunda dos fenómenos sociais,
desde os mais ínfimos aos de maior significado, todos eles elementos
identificativos e constituintes da mesma construção, da mesma História. Os
textos, por exemplo, para além da sua carga escrita, melhor ou pior
interpretada pelo investigador, possuem tantas vezes informações subjetivas,
impercetíveis pelos métodos de análise a que são sujeitos. A partir da sua
natureza material, por exemplo, quantas informações, dúvidas, mistérios,
pistas, conjeturas se podem levantar ou formular!
A análise de
matérias, hoje possível e atingindo um rigor considerável, apoio
importantíssimo para os paleógrafos, através do estudo das tintas, do papel e
carateres, permite compreender melhor os factos ou passos históricos que a eles
se prendem ou relacionam. Deste modo, a História é sempre uma ciência
inacabada. Longe de resolver completamente os seus enigmas e cristalizar na
descoberta a sua ação, a História (não conformista), despoleta questões
continuamente, permitindo-nos, decerto, aproximar da verdade um pouco mais e
criando, ao mesmo tempo, novas dúvidas.
História “uma ciência com leis”, admite L. Febvre,
desde que essas leis não constranjam a ação, sirvam apenas para agrupar e
relacionar “factos até então separados”
e, desta forma a tornem também “numa
unidade viva da ciência”. A problemática atual da História é promover o
acordo entre o institucional e o contingente (6).
Se tomarmos
à letra a palavra “contingente”, que
significa, entre muitas coisas, o que
pode ou não acontecer, cabem nesta definição “o possível e o impossível”.
Ainda que aparentemente pareça só tratar-se de um problema dialético ou
filosófico, vamos tentar analisar a posição de L. Febvre, em relação a este
aspeto.
Este autor,
identificado naturalmente com a sua época, a qual nos aparece de certo modo
limitada ainda pelos impossíveis (1ª metade do século XX), adianta-se ao
pensamento do seu tempo, quando nos diz acreditar nos “progressos que hão de vir de outras ciências” (7), subsidiárias da
História, cuja acção permitirá uma melhor interpretação e conhecimento do
passado. Todavia, não concebe que, no futuro, o “homem” possa vir a dispor de
um aparelho, “impossível de encontrar”,
capaz de fazer ouvir ou reproduzir “depois
de um sono de séculos”, fielmente registada para a eternidade, “a própria voz do passado captada ao vivo”
(8)..
L. Febvre,
um verdadeiro inovador, um historiador progressista para a sua época, adepto de
uma historiografia em novos moldes, não consegue admitir, pela sua própria
formação (com algum tradicionalismo cultural), a História revolucionada pelas
técnicas do futuro (9).
As teorias e
os conceitos dogmáticos da Escolástica Medieval encontraram a sua rutura na
racionalidade moderno-contemporânea.
No campo
fenomenológico, Newton lançou o desafio, criando um pensamento novo e, durante
séculos, foram inabaláveis as suas teorias.
Alguns
séculos depois, Maxwell, Hertz e Augustin-Jean Fresnel, este último relativizando os
conceitos de Newton no campo da Física, abalaram novamente o Mundo. Os dogmas
ruíram uma vez mais.
Não há
verdades universais, nem impossíveis. O impossível de hoje é o possível de
amanhã.
Einstein,
marcando uma completa viragem no pensamento científico, reformularia outras
tantas verdades aparentemente indestrutíveis. Segundo ele, os fenómenos jamais
poderão voltar a reproduzir-se (para tempos diferentes), ou seja, a História é
irreversível. No entanto, a impossibilidade de recriar o acontecimento, não
implica que se não possa reconstruir o facto histórico, a partir de múltiplas
informações gravadas, por exemplo, no subconsciente ou, quem sabe, no inconsciente
coletivo.
Os nossos
sentidos captam e, aqui mesmo, começa a subjetividade do real. A interpretação
e a integração do fenómeno são ambas operações de caráter parcial, ainda que
sirvam suficientemente para a sua inteligibilidade. Nessa medida, pode reconstruir-se
o facto histórico, mas a própria natureza humana, limitada e subjetiva, não
oferece grande fiabilidade e rigor como testemunho desse registo.
Com a Física
Quântica oscilaria novamente o que parecia definitivo e estável e, nessa
medida, mesmo algumas ideias de Einstein acabariam por se tornar parcialmente
desajustadas à explicação de certos fenómenos, encarados num outro âmbito de
crescente complexidade.
À luz dos
conhecimentos atuais, os fenómenos de premonição ou descrições mais ou menos exatas
de passados longínquos, em que o contacto físico e consciente dos relatores
está fora de questão, têm preocupado muitos cientistas. As propostas
explicativas são múltiplas, onde se entrecruzam as ciências biomédicas, a
metafísica, a psicanálise e a parapsicologia.
Com a
hipnose, tem-se alargado o conhecimento do nosso subconsciente. A quantidade de
impressões retidas, não sujeitas à discriminação do consciente, é espantosa.
Através desta técnica de sugestão constroem-se etapas da vida do “homem”, aclaram-se
lacunas da sua identidade, traçam-se aspetos da sua história remota pessoal.
Reconstituem-se, a partir desse profundo arquivo subconsciente, circunstâncias,
factos e fenómenos presenciados tantas vezes dum modo desinteressado e vago.
Mas os sentidos humanos captaram o fenómeno, o facto foi presenciado sem se dar
por isso, a imagem do pequeno pormenor reteve-se na retina e a gravação não
discriminada, sem passar pela consciência, processou-se. Por meio da hipnose,
seriamente conduzida, os resultados obtidos nestes casos são espetaculares.
O cérebro
continua misterioso e ainda incompreensível em muitas das suas funções, mas não
é intransponível, nem impenetrável.
Será que
esses milhares de milhões de informações conscientes, subconscientes,
objetivas, subjetivas, electroquimicamente armazenadas no cérebro, poderão
algum dia vir a ser reproduzidas, como se processa num filme? A historiografia
do tempo social ou tempo médio beneficiaria, sem dúvida, com tal possibilidade.
As fontes vivas, os homens participantes diretos nos fenómenos, enriqueceriam a
construção da História com as suas preciosas informações arrancadas desses
arquivos da mente, por ora, ainda tão inacessíveis.
O
conhecimento científico e tecnológico tem avançado nos últimos 60 anos de uma
forma meteórica. E, afirmamo-lo uma vez mais, assistimos dia após dia à
destruição de impossíveis, apenas viáveis no domínio da ficção e da utopia.
Poder-se-á
algum dia falar de memória cultural de transmissão genética? Servirá ela para a
reconstrução da História? Se assim for, de que via catártica iremos precisar?
Da mística, da parapsicologia, da ciência, de todas elas?
Há locus de memória aparentemente
transmissíveis e a ciência começa a encarar este fenómeno com bastante
seriedade. A etiologia experimental deu
já alguns passos significativos para a sua comprovação (10).
Passam-se,
de geração em geração, informações que consideramos responsáveis por uma
memória coletiva biológica. Isto, é indiscutível. Será que os genes, capazes de
reter impressões e carateres biológicos, transmissíveis ao longo de gerações,
não possuem também elementos de memória individual ou coletiva de ordem
cultural? Admitindo que sim, como se explica que o comum dos mortais não dê por
isso? Será que essa eventual memória poderá, mesmo, ficar acessível através de
técnicas e/ou fármacos? Porque não acreditar que o cérebro, reunidos os
fatores adequados, pode um dia disponibilizar-nos semelhante informação? A
predisposição genética de um indivíduo a determinadas doenças, hoje indiscutível
à luz da medicina preditiva ou predizente, não determina obrigatoriamente que
tais patologias se manifestem durante a sua vida, a menos que se reúnam
condições favoráveis ou o “terreno”
apropriado. A memória genética foi ativada por determinado fator ou circunstância
e o organismo reproduziu a “doença herdada da família”.
Como
explicar também a capacidade, que já foi reconhecida em algumas pessoas, de
regressar a um passado remoto, aquém da sua própria existência física, por
vezes, relembrando como que vivências anteriores, sob a influência da hipnose?
Onde se processou (processa) este arquivo de memória? E como se transmitiu?
Refletir
sobre tais questões será enfermar de ingenuidade, de imaginação criadora
exacerbada, de tendência especulativa da utopia e do fantástico? Admitamos.
Nada aqui encontramos de exatidão experimental e científica. Ademais, as
escolas e os homens que representam os valores mais elevados do conhecimento e
da cultura têm habitualmente um certo receio de aderir claramente a tais ideias
e assuntos. E, assim, raramente a ciência anda ligada a estas matérias. Os seus
adeptos, mesmo quando destacadas figuras do mundo científico, não encontram via
fácil para tais especulações e reflexões consideradas pela ortodoxia, em todas
as épocas, verdadeiras ousadias, anátemas a combater e a punir. Deste modo, ou
calam os resultados dos seus estudos ou sofrem as naturais repercussões, quando
se atrevem a proferir tais heresias.
Mas, até
hoje, onde e quando é que a inovação é ou foi logo (bem) aceite ? Se não fosse
o pensamento ousado de Hipócrates, bem heterodoxo para o seu tempo, a
genialidade dos pensadores proto-cientistas da Época Moderna, em particular do
Renascimento, e o espírito insatisfeito e prático de Robert Koch, Pasteur, A.
Fleming e de tantas outras figuras da contemporaneidade, a medicina, tal como
outras áreas do conhecimento, dificilmente se dissociaria de influências
pré-racionalistas, crenças, superstições e bizantinismos de cariz medieval. O
sonho, a ousadia, o sentido crítico, a insatisfação, a dúvida metódica, a
genialidade e a fé têm feito avançar o Mundo. Neste permanente processo de
revisão, de procura e de mudança, as ciências nada têm de estável ou absoluto e
todas elas não passam de oposições, conflitos, antinomias, avanços, recuos,
certezas lógicas hoje, erros absurdos amanhã (11).
Na verdade,
se temos que acreditar em algo, acreditemos hoje que seremos capazes de pôr em
dúvida amanhã; senão, poderemos ser ultrapassados pelo futuro.
Lucien
Febvre, homem de espírito não hermético
às inovações, parece no entanto não entender que essa mesma ciência que
apregoa, transpondo, uns após outros, graus sucessivos de conhecimento, é
castrada à partida pela sua atitude pouco futurista. Limita-lhe o “desejo insaciável de alargar o horizonte”
(12), esse mesmo desejo que poderá vir a ser a chave mestra com que se abrirão
os impossíveis, com a qual se poderá também reconstruir a História.
O “homem”
jamais virá a dispor de “aparelho,
impossível de encontrar”, capaz de registar “a própria voz do passado captada ao vivo”, diz L. Febvre. Para
construir “o passado de que tem
necessidade” (13), o “homem” deverá contar apenas com o seu trabalho
mental. Não deverá, pois, esperar que máquinas ou outros meios utópicos possam
vir a estar ao seu alcance para a recriação fiel desse passado. Lucien Febvre
parece rejeitar, liminarmente, a inovação e o incontestável desenvolvimento no
domínio das técnicas e instrumentos mas, ele
próprio, um “cientista” do século XX, atento aos grandes avanços e
descobertas do seu tempo, deixa antever nas suas ideias e em alguns dos seus
escritos as tremendas possibilidades que a evolução científica e tecnológica
poderá trazer à História.
Convictos de
que estas últimas reflexões sobre as ideias de Lucien Febvre poderão vir a compreender-se
um pouco melhor, se tivermos em conta outras achegas favoráveis a este diálogo
científico, propomo-nos analisar algumas transcrições da obra do eminente
astrofísico John Gribbin, “À procura do
gato de Schrodinger”, trabalho considerado muito válido no âmbito da Física
Quântica, hoje, uma área científica com um alcance ainda insuspeitado.
Segundo a
relatividade de Einstein, “a marcha de um
relógio é tanto mais lenta quanto mais depressa este se move. À velocidade da
luz o tempo pára. Ora um fotão desloca-se à velocidade da luz. Isto significa
que para um fotão o tempo não tem significado”…, “viajar no tempo, não
significa nada para um fotão(...)”14). As “equações da relatividade permitem
viajar
no tempo, e isto pode
ser percebido com facilidade através de diagramas espácio-temporais”.
O método para viajar no tempo “envolve
uma distorção local da estrutura espácio-temporal,
de tal maneira que nessa região, o eixo do tempo, tem a direcção de um eixo do
espaço na região não distorcida. Uma das direcções espaciais desempenha o papel
de tempo e esta troca entre espaço e tempo permite viajar no tempo”. Esta ideia encontra já a
possibilidade teórica de concretização, de acordo com os cálculos realizados
pelo matemático americano Frank Tipler (15).
“A viagem no tempo verdadeira pode não ser impossível mas sim muito
difícil e muito, muito improvável. Contudo, isto torna aceitável a viagem no
tempo ao nível quântico. Quer a teoria quântica, quer a teoria da relatividade
permitem, de uma forma ou de outra, viajar no tempo. E tudo o que é aceitável segundo estas duas teorias, por mais
paradoxal que se apresente, deve ser levado a sério. E, na verdade, viajar no
tempo é um dos aspectos mais estranhos do mundo das partículas, onde é possível
tirar algo do nada, se se for suficientemente lesto.” (16).
E se estes
impossíveis se tornarem realidades, o que será da História no futuro?
Estará o
“homem” realmente perto do cimo, “de onde
se veria a aurora surgir do crepúsculo”(17), ou continua
na base da “montanha”, acabando de
entrar agora na
Pré-História planetária?? “A
ciência, em vez de ser o foco da nova consciência, contribui para o novo
obscurantismo” (18).
O “homem”
marcha a passos largos rumo à complexidade. Quais os seus limites, qual a sua meta?
Será ele capaz de compreender a complexidade que criou, para poder continuar o
trabalho histórico? E, nos seus “Combates pela História”, saberão os futuros
historiadores encontrar o(s) método(s) adequado(s) ao exercício da sua atividade,
nessa complexidade crescente e imparável, ou não irá a ciência histórica poder
acompanhar o próprio homem?
Notas e Referências Bibliográficas
1. FEBVRE, Lucien ― Exame de Consciência de Uma História e de Um
Historiador. In FEBVRE, Lucien ― Combates pela História I. Lisboa: Editorial
Presença, 1977, p. 19. (Biblioteca das
Ciências Humanas)
2. Idem, p. 22.
3. FONTANA i LÁZARO, J. ― Ascensão e decadência do Annales apud MENDES, José M. Amado ― A História como Ciência: Fontes, Metodologia
e Teorização. Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 78.
4. Idem, ibidem
Este movimento historiográfico, constituído em torno do periódico
francês Annales d´histoire économique et
sociale, carateriza-se pela incorporação de métodos das Ciências Sociais
aplicados à História.
5. FEBVRE, Lucien ― Op. Cit.
p. 32.
6. Idem, p. 33-35.
7. Idem, p. 33.
8. Idem p. 34.
9. Voltaire, já em meados do século XVIII defendia uma História de
todos os homens e não, unicamente, de reis e privilegiados. A História
económica, demográfica, das técnicas e dos costumes, deveria substituir a
estritamente política, militar ou diplomática.
10. Grupos de várias gerações de ratinhos (animais de
laboratório), são sujeitos à seguinte experiência: para atingirem a comida têm
de passar por um labirinto complicado. Os descendentes de 1ª geração dos ratos
que, após algumas tentativas, haviam
conseguido o objetivo, chegam também ao alvo com um menor número de tentativas,
quer em relação aos próprios pais, quer em relação a outros, filhos de ratos
que mais dificilmente lá chegaram ou não conseguiram mesmo os seus intentos, no
tempo determinado. Os descendentes de 2ª geração dos ratinhos mais aptos
continuam a manifestar uma maior capacidade que os seus antecedentes,
diminuindo, em alguns casos, consideravelmente, o número de vezes necessárias
para chegar à comida. Os labirintos, embora iguais, são mudados
permanentemente, para obviar os cheiros. Estar-se-á perante uma transmissão
experiencial genética? De acordo com os conceitos atuais de genética, é
altamente improvável que em tão pouco tempo se tenha verificado uma mutação
responsável por tal diferenciação de comportamento. Então como se transmitirá,
efetivamente, esta aparente informação? Deixemos às Neurociências essa
reflexão.
11. FEBVRE, Lucien ― Op.
Cit. p. 35.
12. Idem, p. 36.
13. Idem, p. 35.
14. GRIBBIN, John ― À
Procura do Gato de Schrodinger: A Física Quântica e sua influência no Mundo
Atual. Lisboa: Editorial Presença, 1984, p. 133.
15. Idem, p. 135.
16. Idem, p. 136.
17. FEBVRE, Lucien ― Op. Cit.
p. 36.
18. MORIN, Edgar ― O Método II: A vida pela vida. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1980, p. 418. (Biblioteca Universitária)