terça-feira, 6 de janeiro de 2015

DIOGO ALFARO: Médico Hebreu Nobilitado por Dom João III


D I O G O  A L F A R O
Médico hebreu nobilitado por D. João
III
Um paradoxo! O mesmo monarca que autorizou a Inquisição em Portugal, em 1536, um ano antes, em 1535, reconhece o estatuto de nobreza a um judeu, cristão novo, concedendo-lhe o "título de nobreza e fidalguia de cota d´armas" e brasão.
 
Por:     João Frada
            Médico/Professor Ph.D.  (Faculdade de Medicina de
            Lisboa/HSM - Lisboa)
 
Preâmbulo
 
Inserido numa época de grandes e radicais mudanças mentais, culturais e religiosas, Diogo Alfaro, físico hebreu, paradoxalmente, pôde considerar-se, entre os intelectuais ibéricos do seu tempo, um dos poucos a serem bafejados pela sorte e, quiçá, pela Estrela de David.
O século XVI raiava e o anti-semitismo estendia-se como um rastilho, de Espanha a Portugal.
Instituído o Tribunal do Santo Ofício no país vizinho, pela autorização Papal de 1478, três anos depois, em 1481, ardem já cristãos-novos na fogueira.
Em 1492, Granada é definitivamente tomada aos mouros. Espanha, agora politicamente unificada e liberta deste problema debate-se, no entanto, com gastos fabulosos exigidos pela fortíssima aposta em torno da empresa ultramarina. O preço da sua política eminentemente bulionista, se bem que a médio prazo faria escorrer um enorme caudal de prata e ouro oriundos das colónias, sobretudo americanas, exigiu na fase de arranque um esforço económico considerável dirigido, em particular, ao desenvolvimento da indústria naval. Na ausência de uma economia interna produtiva e forte, durante séculos apenas voltada para a exploração da terra em natural consonância com o modelo de vida medieval, perante o colapso das habituais fontes de receita provenientes dos saques oriundos das Cruzadas fora e dentro do território, a governação espanhola, decidida a fazer face aos elevados custos da "aventura colonial" tende, obviamente, a recorrer a estratégias drásticas no domínio de política fiscal. Pensava assim obter os fundos necessários a tão ousada e onerosa empresa.
Tradicionalmente detentora de um grande poder económico, a comunidade judaica depressa viria a ser considerada como a panaceia ideal para solucionar as avultadas exigências impostas pela expansão ultramarina acabando, uma vez mais, por constituir o alvo predileto da Fazenda Pública, primeiro em Espanha e depois em Portugal. Deste modo, à sombra da heresia e da intolerância religiosa, durante séculos perseguiram-se, espoliaram-se e agrediram-se milhares de judeus cujos bens patrimoniais  acabavam quase sempre por ir parar aos cofres da Coroa.
Em Portugal, embora ocupem altos cargos na administração da Fazenda Pública, na docência Universitária e até na Corte, onde na qualidade de físicos e letrados são conselheiros de monarcas, os judeus, perante a sua "marca original", mesmo antes do aparecimento do Santo Ofício, não se encontram completamente livres de represálias ou de antipatias. Conotados frequentemente com a usura (e na realidade, são eles que dominam as Bancas privadas, chegando a emprestar dinheiro a nobres e ao próprio Rei), indesligáveis dos seus rituais religiosos, heréticos aos olhos dos cristãos, responsabilizados desde há muito por tudo o que de mau acontecia na sociedade cristã (pragas, doenças, epidemias e morte), são relegados ao desprezo, ao roubo e ao massacre. A animosidade contra este grupo étnico assume ao longo dos reinados de D. João II, D. Manuel I e D. João III  proporções assustadoras.
Em 1531, o "Piedoso" solicita com veemência ao Papa autorização para estabelecer a Inquisição no seu país. O Tribunal do Santo Ofício instalar-se-ia definitivamente em Portugal, no ano de 1536.
Sabia-se no entanto, bem antes desta data e desde há vários anos, que aquela Instituição também aqui viria a surgir, com todas as suas terríveis implicações sobre os hebreus. Face aos nossos compromissos e ligações com os reis católicos de Espanha, tal facto era inadiável.
Amato Lusitano, Garcia de Orta, Manuel Brudo e tantos outros de origem judaica, temendo os imponderáveis caprichos das garras inquisitoriais, abandonam o país e nunca mais regressam. Convictamente ligados ao judaísmo e aos preceitos da sua religião (com excepções raras), só na aparência convertidos ao cristianismo, estes grandes vultos da medicina (e as obras que nos deixaram são indesmentíveis), não se sentiram de modo nenhum seguros, protegidos ou tolerados na sociedade portuguesa em que viveram.
Diogo Alfaro, porém, embora de hebreu de nascimento, viria a ser uma excepção à regra. De ascendência nobre, físico e cirurgião do Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa, aparentemente sem ter escrito o que quer que seja (no domínio da ciência médica), cumpridor de horários, prontamente convertido à Fé Cristã, bem aceite como físico na Corte, eventualmente também conselheiro real, recebe de D. João III, em 1535, elevado reconhecimento claramente expresso na mercê régia que o tornaria nobre e fidalgo de cota d*armas.
Um cristão-novo é assim agraciado pelo mesmo monarca que apoia a instalação da terrível máquina inquisitorial e a institui no ano imediato, 1536.
Facto insólito, se tivermos em conta a sorte de outros intelectuais que viveram naquelas décadas abaladas pela intolerância religiosa e pelos horrores da Inquisição.
Dissecando cuidadosamente as informações colhidas nas diversas fontes disponíveis sobre Diogo Alfaro e valorizando, em especial, o texto da carta régia mandada passar por D. João III, na qual o monarca lhe concede e reconhece o título de nobreza e fidalguia de cota de armas, estabelecemos num primeiro momento o estudo crítico documental e bibliográfico. Seguidamente, com base nessas reflexões tentaremos traçar a biografia essencial deste físico português do século XVI. 
 
Estudo crítico de fontes
 
"Carta em que D. João III concede a Diogo Alfaro o título de nobreza e fidalguia de cota d'armas (1535.Outubro.13)", [ANTT ( Lisboa), Chancelaria de D. João III, Livro 47, fol. 26  e 26 v.], transcrita e publicada por João José Cúcio Frada. 
 
[Dom João, etc, a quantos esta minha carta virem faço saber que o licenciado mestre/ Diogo d'Alfaro físico e cirurgião do hospital de Todos-os-Santos/ de Lisboa me fez petição como ele descendia por linha direita e masculina/ de geração e linhagem dos Alfaros [que] são/ fidalgos de cota d´armas e que de direito as suas armas lhe pertencem pe/dindo-me por mercê que por a memória de seus antecessores se não perder e ele/ gozar e usar da honra das armas que pelos feitos de seus reinos/ ganharam e lhes foram dadas e assim dos privilégios, honras, graças e/ mercês que por direito por bem delas lhe pertencem lhe mandasse dar minha carta/ das ditas armas que estavam registadas em livros dos registos das/ armas dos nobres e fidalgos de meus Reinos que tem Portugal meu Rei/ d´armas principal a qual petição vista por mim mandei assim a ele tirar in/quirição de testemunhas a qual foi tirada por mercê especial mandado pelo doutor/ Gonçalo Peres corregedor do cível na minha cidade de Lisboa e por Lopo Fernandes/ escrivão ante ele além d´outra inquirição que veio d´Aragão pela qual/ prova ele suplicante descender por linha direita e masculina da dita/ geração dos Alfaros que são fidalgos de cota d´armas como filho/ legítimo que foi fidalgo muito honrado e do tronco desta geração/ dos Alfaros e que de direito as suas armas lhe pertencem as quais lhe mandei/ dar esta minha carta com seu brasão, elmo e timbre como aqui são/ divisados e assim como fiel e verdadeiramente se achavam divisados e/ registados em os livros dos Registos do dito Portugal meu Rei d´armas/ as quais armas são as seguintes, a saber, o campo vermelho e três/ pescoços e cabeças de serpe[nte]s de prata atadas com uma corda d´ouro e uma/ das cabeças olha para a parte direita do escudo e a outra para a outra/ parte e a do meio para cima, elmo de prata aberto guarnecido d´ouro paqui/fe d´ouro, prata e vermelho e por timbre os três pescoços com as cabeças/ que saem do elmo, o qual escudo, armas e sinais possa trazer e traga/ o dito licenciado mestre Diogo assim como as trouxeram e delas usaram seus antecessores e os nobres/ e antigos fidalgos sempre costumavam as trazer em tempo dos meus es/clarecidos Reis meus antecessores e com eles possa entrar em batalhas/ campos, duelos, ritos, escaramuças e desafios e exercitar com elas todos os outros lícitos de guerra e de paz e assim os possam trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas pô-las em suas/ casas e edifícios e deixá-las sobre sua própria sepultura e final/ mente se servir e honrar gozar e aproveitar delas em tudo como a sua/ nobreza convém, porém mando a todos, meus corregedor, desembargador, juiz e/ justiças e alcaides, isto é, em especial aos meus Reis/ d´armas, arautos e/ paçonantes e a quaisquer outros oficiais e pessoas a que esta minha/ carta for mostrada e o conhecimento dela pertencer que em todo lha cumpram/ e guardem e façam cumprir e guardar como em ela é conteúdo sem/ dúvida nem embargo algum que lhe em ele seria posto por que assim é/ minha mercê, dada em a minha mui nobre e sempre leal cidade/ de Évora aos XIII dias d´outubro el-Rei o mandou pelo bacharel António/ Rodrigues, Portugal seu Rei d´armas principal Pêro d´Évora Rei d´armas Algarve e escrivão da nobreza a fez [no] ano do nosso senhor Jesu[s]/-Cristo de mil e quinhentos trinta e cinco anos].
 
Mestre Diogo, físico e cirurgião do Hospital de Todos-os-Santos de Lisboa, invocando a sua origem aragonesa, dizendo-se descendente por "linha direita e masculina de geração e linhagem dos Alfaros"  (fidalgos de cota d'armas), pede a D. João III que a sua condição de nobre lhe seja reconhecida. O monarca manda inquirir e confirmar as suas armas, nos "livros dos registos das armas dos nobres e fidalgos"  de seus Reinos e ordena um pedido de informações para Aragão, a fim de se certificar da legitimidade afirmada por Alfaro quanto ao seu estatuto de fidalgo. Confirmada a sua verdadeira condição, é-lhe reconhecido o direito às armas, com "brasão, elmo e timbre". Tal como as "trouxeram e delas usaram seus antecessores e os nobres e antigos sempre as costumavam  trazer"  no tempo dos esclarecidos reis, seus antecessores, assim as poderia usar Diogo Alfaro a partir de agora.
Parecer-nos-ia, pois, lícito concluir que o nosso físico, originário de uma geração aragonesa de “Alfaros”, tendo recebido do "Piedoso" armas  bem diferentes das dos seus antepassados, não continuou propriamente a sua antiga linhagem, apenas iniciou um novo ramo em Portugal. Esta ligação entre Mestre Alfaro e a linhagem de Aragão, depois da inquirição determinada pelo monarca, parece não deixar margem para dúvidas. Mas como se justificam brasões tão diferentes?
Albergaria e M. Mascarenhas, genealogistas que se debruçam sobre o percurso e as origens dos Alfaros na Península Ibérica, não só os situam no Reino de Aragão como afirmam também a sua presença em Jaen e em Sevilha.
"Em Aragão são muito antigos e há morgados ricos deste apelido em Jaen e [em] Sevilha, aonde usam por armas um escudo partido, no primeiro campo de ouro, dois bastonetes verdes e no segundo meia lua de prata e campo de azul". 
"Esta família foi ilustre e antiga. No Reino de Aragão tomou o seu apelido da Vila de Alfaro conquistada aos mouros pelos fidalgos cujos descendentes a tomavam o cognome e os há também em Jaen e Sevilha, cujas armas traz Agnote de Molina na sua nobreza e de Andaluzia e as repete Villas Boas nas suas Nobiliarquias." 
O facto de, aparentemente, existirem duas linhas de Alfaros, os de Aragão e os da Andaluzia (eventualmente saídas do mesmo tronco comum), e de termos que admitir que o "Piedoso"  reconhece a Diogo Alfaro "brasão, elmo e timbre como aqui são divisados e assim como fiel e verdadeiramente se achavam divisados e registados em os livros dos Registos do dito Portugal meu Rei d´armas" , isto é, concede-lhe o direito de usar as armas dos seus antepassados aragoneses, leva-nos a pensar que tais armas nada tinham a ver com as dos espanhóis do mesmo nome conforme pudemos acima constatar pela descrição de Albergaria. Deste modo, na total ausência de outra referência, notícia ou gravura alusiva a qualquer outro brasão usado por Alfaros espanhóis, para além daquele que aparece descrito pelo autor da obra Triunfos de la Nobleza, supracitado, temos de admitir duas possibilidades: ou não tivemos acesso ao verdadeiro e original brasão dos Alfaros Aragoneses, apesar das nossas esforçadas diligências de investigação e só o podemos conceber através da réplica de armas concedidas a Diogo Alfaro ou as palavras de D. João III (a que se refere a nota sete anterior) não pretendiam significar a reprodução exata das armas dos seus antepassados, obedecendo à mesma disposição estética e simbólica. Inclinando-nos para esta última hipótese, pensamos que o "Piedoso", querendo simbolizar o acto de conversão ao cristianismo de Diogo Alfaro, reconhecendo-o como nobre e, atribuindo-lhe  título e brasão, não tinha em mente conceder-lhe as velhas armas da sua linhagem aragonesa, por serem estranhas entre nós, e pretendera apenas reconhecer que tinha direito a elas "tal como as trouxeram e delas usaram seus antecessores", outorgando-lhe um novo brasão mais identificado com o simbolismo, com o espírito e com a natureza da nobiliarquia portuguesa.  
A leitura deste título na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, cujo texto se revela de um modo geral concordante com o exposto na carta régia mandada passar por D. João III, reforça um pouco mais as nossas convicções acerca do assunto.
"(...) certo mestre Diogo de Alfaro, de geração hebraica, conhecido pelo [o] 'da cabeleira' e natural da vila deste nome, foi médico do Rei D. Manuel I e D. João III lhe deu armas novas no ano de 1535 (e não, como diz o Armorial Lusitano, D. Manuel I, que já tinha morrido nessa data)" .
O responsável por esta descrição aponta-nos como bibliografia- Julio de Atienza, editado pelo Gab. Est. Heráld., obra a que não tivemos acesso.
Pretenderia o autor do texto acima transcrito, ao usar a  expressão — armas novas —, definir o aparecimento, pela primeira vez na cena da nobreza e fidalguia portuguesas, da família Alfaro representada pelas armas que compõem o brasão atribuído a Mestre Diogo, ou deve subentender-se pelas suas palavras que  o rei quisera assim diferenciá-las das espanholas com o mesmo nome?
Nas suas "advertências à nobiliarquia portuguesa", Francisco Coelho (Rei d'armas), afirma ter ainda visto as armas dos Alfaros, gravadas em "sepultura no Cruzeiro da Igreja de S. Domingos misturadas com as armas dos Villa-Lobos". 
Consultadas várias obras sobre Genealogia e Heráldica portuguesas pudemos constatar que mestre Diogo se aponta como o iniciador em Portugal da família Alfaro, não se lhe reconhecendo outros antecedentes linhagísticos no território nacional. A ascendência de Diogo Alfaro deverá manter-se como uma questão a reequacionar exigindo, se possível, futuras investigações.
Finalmente, uma última consideração nos parece pertinente. Porquê, um homem de ascendência judaica reconhecido como nobre e agraciado com honras de fidalgo de cota d´armas, precisamente nesta data, 1535, ano que antecede a instituição do Santo Ofício em Portugal? A ascensão de um cristão-novo à nobreza portuguesa, não obstante a sua profissão de físico na Corte, é nesta década, indiscutivelmente, um acontecimento curioso e invulgar.
Em Triunfos de la Nobleza, manuscrito sem datação a que já aludimos anteriormente, o seu autor não só situa os Alfaros espanhóis no Reino de Aragão, apontando-os como conquistadores da vila mourisca de Alfaro, como parece considerar ser esta a naturalidade de mestre Alfaro. Localiza, no entanto, "a vila de Alfaro em Castela". Todavia, se atentarmos que o Reino de Aragão se fundiu com Castela em 1475, não nos parecerá desprovida de senso aquela afirmação. E, mais adiante, continua: "Ao doutor mestre Diogo Alfaro, deu o rei D. Manuel por armas um campo (...), e por haver nascido Alfaro, deu-lhe el-Rei tal apelido, honrando-o por ser grande letrado e acudir ao seu serviço com pontualidade, mostrando-se muito prático e doutor em medicina (...) e, sendo hebreu de nascimento, pediu baptismo(...)" .
Reflectindo sobre a transcrição supracitada constatamos que o seu autor, sem mencionar a fonte ou fontes de que se serviu, para além de atribuir incorretamente ao "Venturoso" aquela graça régia, refere-se a Mestre Alfaro designando-o não como licenciado mas "doutor em medicina", estatuto este que não pudemos realmente comprovar a  partir da leitura da carta Joanina.
Do Teatro Genealógico, obra atrás citada da autoria de José Freire Monterroyo Mascarenhas (falecido em 1760), transcreve-se o seguinte: "Este era hebreu de Nação e 'mui douto em Medicina' na qual faculdade serviu muito ao senhor Rei D. Manuel e com grande pontualidade converteu-se à nossa Santa fé Católica e o mesmo Rei lhe fez mercê (...) de o fazer Nobre e fidalgo de cota de armas dando-lhe por Brasão (...)" .
Perante as afirmações destes dois últimos autores, afiguram-se-nos algumas conclusões imediatas. Embora desconhecendo a datação do primeiro documento apontado, poderemos pôr a hipótese de ter sido uma das fontes usadas por Mascarenhas para a elaboração da sua obra. Por outro lado, ambos os genealogistas o identificam como hebreu convertido ao cristianismo. Todavia, quando se referem à pontualidade de Alfaro, enquanto o discurso do primeiro (Albergaria)  não deixa margem a dúvidas (pelas corretas sintaxe e pontuação), o texto do segundo, quase sem pontuação, pode induzir-nos em duas interpretações diferentes: Alfaro, homem letrado e físico de D. Manuel, cumprindo as suas funções com zelo e pontualidade, de condição hebraica mas manifestando-se cristão ao pedir que o baptizassem, teria caído nas graças do monarca, pelo que lhe foram concedidas as honras de nobreza; ou então, o rei, apreciando acima de tudo a pontualidade (prontidão) com que Alfaro se convertera à Santa Fé Católica, tê-lo-ia recompensado.
Acrescente-se, ainda, que os dois autores enfermam do mesmo erro, quando atribuem a D. Manuel a mercê concedida a Diogo Alfaro.
Perante a leitura de Mascarenhas, atrevemo-nos também a concluir que ou este conhecia perfeitamente o escrito do autor espanhol e ali bebera parte da sua informação ou, circunstancialmente, utilizou a(s) mesma(s) fonte(s) de Albergaria. Inclinamo-nos para a primeira hipótese. Por referência colhida no Guia de Manuscritos da Ajuda, soubemos que o Teatro Genealógico, atrás citado, fora mandado copiar por João de Souza Coutinho no ano de 1741. Face a este último dado pensamos poder afirmar que Triunfos de la Nobleza se trata efetivamente de um escrito mais antigo, anterior, portanto, àquela data.
Francisco António M. Bastos, autor de onde bebemos a primeira notícia sobre a existência de Diogo Alfaro em Portugal, a qual iria ser ponto de partida deste estudo, apenas nos cita Mascarenhas como fonte na sua obra, Nobiliarquia Médica. Deste modo, Bastos enfermaria inevitavelmente dos mesmos erros que se apontam àquele autor espanhol sobre este tema.
"Mestre Diogo Alfaro. hebreu de Nação, e mui douto em Medicina, na qual faculdade serviu muito ao Senhor Rei D. Manuel, convertendo-se à nossa santa fé católica, e o mesmo rei lhe fez mercê de o fazer nobre e fidalgo de Cota de Armas".
Alfredo Luiz Lopes, no seu estudo O Hospital de Todos-os-Santos, embora fornecendo-nos alguns dados importantes para este estudo, não nos elucida sobre as fontes onde pesquisou tais informações e acaba também por insistir no mesmo erro historiográfico, ao atribuir a D. Manuel a "mercê do grau de nobre e fidalgo de cota de armas"  concedida a Diogo Alfaro.
 
Diogo Alfaro: o homem e a época
 
Mestre Alfaro, de ascendência hebraica, mais conhecido pela sua alcunha — o da cabeleira —, terá surgido na cena portuguesa durante o reinado de D. Manuel I e é nesta Corte que vem a atingir uma posição bastante privilegiada como médico real e físico-mor do Reino.
Morreria este monarca e D. João III subiria ao trono, em 1521. Mestre Alfaro, bem visto entre a nobreza e os cortesãos da casa real, continuaria as suas funções como físico do rei.
Quanto à sua formação universitária, desconhece-se onde teve lugar, se em Portugal se no estrangeiro. Contudo, se atendermos ao que acontecia habitualmente nessa época, em que se procurava além-fronteiras (em especial, Espanha e França) uma preparação académica considerada de vanguarda, Salamanca e/ou Alcalá, importantes escolas médicas espanholas poderão ter sido eventualmente frequentadas por Diogo Alfaro.
No exercício das suas funções praticou e ensinou a arte médica no Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa. Por nomeação em 9 de Julho de 1528, terá exercido o cargo de físico , em substituição de Rodrigo Rebello  e o de cirurgião, substituindo Mestre Vasco.
Apesar da época, em que judeus e cristãos-novos de todos os estratos socioprofis-sionais e económicos, alguns de grande renome, temiam cair nas malhas da Inquisição (instituída em Espanha desde 1478) que se suspeitava ser brevemente implantada em Portugal, Mestre Alfaro viria a ser um verdadeiro privilegiado.
Mas a História é assim mesmo, feita de contrastes, paradoxos, enigmas e factos insólitos. E enquanto muitos tiveram que abandonar o país devido à crescente insegurança que a sua condição religiosa lhes acarretava no seio da sociedade portuguesa e ibérica em geral, este cristão-novo viria a ser agraciado pelo mesmo monarca responsável pela instalação da "máquina inquisitorial", aqui instituída em 1536.
Inteligente e prudente, adere prontamente ao cristianismo, deixando-se baptizar.
Aparentemente sem ter escrito o que quer que seja no domínio da ciência médica, cumpridor de horários, prontamente convertido à Fé Cristã, bem aceite como físico na Corte, eventualmente também conselheiro real, Diogo Alfaro receberia de D. João III, em 1535, uma prova de elevado reconhecimento expressa na mercê régia que o tornaria "nobre e fidalgo de cota d'armas", com direito a "brasão, elmo e timbre".
 O seu brasão consistia no seguinte: em campo vermelho, três cabeças de serpe de prata, com os respectivos pescoços, cortados, enfeixados e atados de oiro; a cabeça do meio, montante, e as dos lados, em fugida. O timbre, constituído pelos moventes do escudo, isto é, pelos pescoços e cabeças de serpe.
Analisadas as várias descrições disponíveis sobre os Alfaros portugueses, não nos foi possível estabelecer, definitivamente, a sua ascendência genealógica e nobiliária, dificuldade, de resto, semelhante às dos diversos especialistas interessados por este assunto. Mas enquanto alguns autores e documentos remetem as suas origens para a família Aragonesa com o mesmo nome, outros parecem considerar a existência de duas árvores genealógicas, uma em Aragão e outra na Andaluzia, limitando-se apenas a situar a naturalidade de Diogo Alfaro na vila do mesmo nome, localizada na província de Logronho, vila essa tomada aos mouros pelos Alfaros espanhóis durante a reconquista.
Relativamente à origem das armas que depois de reconhecida a sua condição de nobre lhe seriam outorgadas também não há certezas definitivas. Bem diferentes das [únicas] que se conhecem como pertencentes aos Alfaros espanhóis, as armas atribuídas por  D. João III a Diogo Alfaro, iniciador da linhagem portuguesa com o mesmo nome, tudo leva a crer terem sido concepção heráldica de cunho eminentemente nacional. E a completa ausência de outras referências documentais e bibliográficas alusivas a qualquer outro brasão usado pelos nobres e fidalgos aragoneses seus antecessores, para além daquele de que há notícia, permite-nos concluir que as tais armas novas  referidas na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, longe de serem réplicas das velhas armas de família, foram realmente uma inovação por vontade expressa do rei e por exigência das próprias normas regulamentadoras de acesso à nobiliarquia portuguesa.
 
Considerações finais
 
Exumado e transcrito o documento que consideramos a fonte principal deste estudo biográfico (carta régia de D. João III), deparámo-nos com o problema das relações precisas entre a nova linhagem portuguesa iniciada com Mestre Alfaro e a espanhola com o mesmo nome, cujos brasões são claramente diferentes, aclarámos alguns aspetos relacionados com a vida deste físico e pudemos sobretudo corrigir definitivamente um erro historiográfico "perpetuado" por diversos historiadores que trataram este tema: foi efetivamente D. João III e não D. Manuel I quem nobilitou Diogo Alfaro, médico cristão-novo do século XVI.
 
Bibliografia
 
ALBERGARIA, Triunfos de la Nobleza, Biblioteca Nacional de Lisboa [Códice 1119].
 
BAENA, Visconde de Sanches de, Arquivo Heráldico-Genealógico, Lisboa, s. t., 1872.
 
BASTOS, Francisco António Martins, Nobiliarquia Médica: notícia dos médicos e cirurgiões da Real Câmara, Lisboa, Imprensa União Tipográfica, 1858.
 
BOLETIM da Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, F.M.L., Nº 33, Abril.1988.
 
ENCICLOPÉDIA  Luso-Brasileira de Cultura, Vol. I, Lisboa, Editorial Verbo, s. d.
 
GRANDE ENCICLOPÉDIA  Portuguesa e Brasileira, Vol. I, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Lda., s. d.
 
MASCARENHAS, José Freire Monterroyo, Guia de Manuscritos da Ajuda, Mss. da Real Biblioteca de S. Majestade (Biblioteca da Ajuda), Lisboa, s.n., s. d.
 
MASCARENHAS, José Freire Monterroyo, Teatro Genealógico, Biblioteca da Ajuda (Lisboa) , s. d. [47-XIII-17]
 
MATOS, Armando de, Brasonário de Portugal, Vol. I, s. n. t.
 
PINTO, Albano da Silveira, Resenha das Famílias Titulares e Grandes de Portugal, Lisboa, s. n., s. d.
 
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Diogo Alfaro, um médico hebreu nobilitado por D. João III
 
Abstract
 
In this article, the author researches, clarifies and rectifies the biographic knowledge of an hebrew physician of the 16th century which, curiously, in 1535, one year before   the emergence of the inquisition in Portugal, in an age in which the jewish did not have great security in the country, received from the king the acknowledgement of the condition of "noble and lord of coat of arms". The charter issued in Évora transcribed and published, in 1535, according to the Chancellery of D. João III, Book 47, sh. 26 and 26 v., the author, finally, proceeds to the correction of an historiographic error perpetuated by several authors as well as by many hanwritten and printed sources which indicate [wrongly] D. Manuel as the concessor of that title of nobility.