D I O G O
A L F A R O
Médico hebreu nobilitado por D. João
III
Um paradoxo! O mesmo monarca que autorizou a Inquisição em Portugal, em 1536, um ano antes, em 1535, reconhece o estatuto de nobreza a um judeu, cristão novo, concedendo-lhe o "título de nobreza e fidalguia de cota d´armas" e brasão.
Por: João
Frada
Médico/Professor
Ph.D.
(Faculdade de Medicina de
Lisboa/HSM - Lisboa)
Preâmbulo
Inserido numa época de grandes e radicais
mudanças mentais, culturais e religiosas, Diogo Alfaro, físico hebreu,
paradoxalmente, pôde considerar-se, entre os intelectuais ibéricos do seu
tempo, um dos poucos a serem bafejados pela sorte e, quiçá, pela Estrela de
David.
O século XVI raiava e o anti-semitismo
estendia-se como um rastilho, de Espanha a Portugal.
Instituído o Tribunal do Santo Ofício no país
vizinho, pela autorização Papal de 1478, três anos depois, em 1481, ardem já
cristãos-novos na fogueira.
Em 1492, Granada é definitivamente tomada aos
mouros. Espanha, agora politicamente unificada e liberta deste problema
debate-se, no entanto, com gastos fabulosos exigidos pela fortíssima aposta em
torno da empresa ultramarina. O preço da sua política eminentemente bulionista,
se bem que a médio prazo faria escorrer um enorme caudal de prata e ouro
oriundos das colónias, sobretudo americanas, exigiu na fase de arranque um
esforço económico considerável dirigido, em particular, ao desenvolvimento da
indústria naval. Na ausência de uma economia interna produtiva e forte, durante
séculos apenas voltada para a exploração da terra em natural consonância com o
modelo de vida medieval, perante o colapso das habituais fontes de receita
provenientes dos saques oriundos das Cruzadas fora e dentro do território, a
governação espanhola, decidida a fazer face aos elevados custos da
"aventura colonial" tende, obviamente, a recorrer a estratégias
drásticas no domínio de política fiscal. Pensava assim obter os fundos necessários
a tão ousada e onerosa empresa.
Tradicionalmente detentora de um grande poder
económico, a comunidade judaica depressa viria a ser considerada como a
panaceia ideal para solucionar as avultadas exigências impostas pela expansão
ultramarina acabando, uma vez mais, por constituir o alvo predileto da Fazenda
Pública, primeiro em Espanha e depois em Portugal. Deste modo, à sombra da
heresia e da intolerância religiosa, durante séculos perseguiram-se,
espoliaram-se e agrediram-se milhares de judeus cujos bens patrimoniais acabavam quase sempre por ir parar aos cofres
da Coroa.
Em Portugal, embora ocupem altos cargos na
administração da Fazenda Pública, na docência Universitária e até na Corte,
onde na qualidade de físicos e letrados são conselheiros de monarcas, os
judeus, perante a sua "marca original", mesmo antes do aparecimento
do Santo Ofício, não se encontram completamente livres de represálias ou de
antipatias. Conotados frequentemente com a usura (e na realidade, são eles que
dominam as Bancas privadas, chegando a emprestar dinheiro a nobres e ao próprio
Rei), indesligáveis dos seus rituais religiosos, heréticos aos olhos dos
cristãos, responsabilizados desde há muito por tudo o que de mau acontecia na
sociedade cristã (pragas, doenças, epidemias e morte), são relegados ao
desprezo, ao roubo e ao massacre. A animosidade contra este grupo étnico assume
ao longo dos reinados de D. João II, D. Manuel I e D. João III proporções assustadoras.
Em 1531, o "Piedoso" solicita com
veemência ao Papa autorização para estabelecer a Inquisição no seu país. O
Tribunal do Santo Ofício instalar-se-ia definitivamente em Portugal, no ano de
1536.
Sabia-se no entanto, bem antes desta data e
desde há vários anos, que aquela Instituição também aqui viria a surgir, com
todas as suas terríveis implicações sobre os hebreus. Face aos nossos
compromissos e ligações com os reis católicos de Espanha, tal facto era
inadiável.
Amato Lusitano, Garcia de Orta, Manuel Brudo
e tantos outros de origem judaica, temendo os imponderáveis caprichos das
garras inquisitoriais, abandonam o país e nunca mais regressam. Convictamente
ligados ao judaísmo e aos preceitos da sua religião (com excepções raras), só
na aparência convertidos ao cristianismo, estes grandes vultos da medicina (e
as obras que nos deixaram são indesmentíveis), não se sentiram de modo nenhum
seguros, protegidos ou tolerados na sociedade portuguesa em que viveram.
Diogo Alfaro, porém, embora de hebreu de
nascimento, viria a ser uma excepção à regra. De ascendência nobre, físico e
cirurgião do Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa, aparentemente sem ter
escrito o que quer que seja (no domínio da ciência médica), cumpridor de
horários, prontamente convertido à Fé Cristã, bem aceite como físico na Corte,
eventualmente também conselheiro real, recebe de D. João III, em 1535, elevado
reconhecimento claramente expresso na mercê régia que o tornaria nobre e
fidalgo de cota d*armas.
Um cristão-novo é assim agraciado pelo mesmo
monarca que apoia a instalação da terrível máquina inquisitorial e a institui
no ano imediato, 1536.
Facto insólito, se tivermos em conta a sorte
de outros intelectuais que viveram naquelas décadas abaladas pela intolerância
religiosa e pelos horrores da Inquisição.
Dissecando cuidadosamente as informações
colhidas nas diversas fontes disponíveis sobre Diogo Alfaro e valorizando, em
especial, o texto da carta régia mandada passar por D. João III, na qual o
monarca lhe concede e reconhece o título de nobreza e fidalguia de cota de
armas, estabelecemos num primeiro momento o estudo crítico documental e
bibliográfico. Seguidamente, com base nessas reflexões tentaremos traçar a
biografia essencial deste físico português do século XVI.
Estudo
crítico de fontes
"Carta em que D. João III concede a
Diogo Alfaro o título de nobreza e fidalguia de cota d'armas
(1535.Outubro.13)", [ANTT ( Lisboa), Chancelaria de D. João III, Livro 47,
fol. 26 e 26 v.], transcrita e publicada
por João José Cúcio Frada.
[Dom João, etc, a quantos esta minha carta
virem faço saber que o licenciado mestre/ Diogo d'Alfaro físico e cirurgião do
hospital de Todos-os-Santos/ de Lisboa me fez petição como ele descendia por
linha direita e masculina/ de geração e linhagem dos Alfaros [que] são/
fidalgos de cota d´armas e que de direito as suas armas lhe pertencem
pe/dindo-me por mercê que por a memória de seus antecessores se não perder e
ele/ gozar e usar da honra das armas que pelos feitos de seus reinos/ ganharam
e lhes foram dadas e assim dos privilégios, honras, graças e/ mercês que por
direito por bem delas lhe pertencem lhe mandasse dar minha carta/ das ditas
armas que estavam registadas em livros dos registos das/ armas dos nobres e
fidalgos de meus Reinos que tem Portugal meu Rei/ d´armas principal a qual
petição vista por mim mandei assim a ele tirar in/quirição de testemunhas a
qual foi tirada por mercê especial mandado pelo doutor/ Gonçalo Peres
corregedor do cível na minha cidade de Lisboa e por Lopo Fernandes/ escrivão
ante ele além d´outra inquirição que veio d´Aragão pela qual/ prova ele
suplicante descender por linha direita e masculina da dita/ geração dos Alfaros
que são fidalgos de cota d´armas como filho/ legítimo que foi fidalgo muito
honrado e do tronco desta geração/ dos Alfaros e que de direito as suas armas
lhe pertencem as quais lhe mandei/ dar esta minha carta com seu brasão, elmo e
timbre como aqui são/ divisados e assim como fiel e verdadeiramente se achavam
divisados e/ registados em os livros dos Registos do dito Portugal meu Rei d´armas/
as quais armas são as seguintes, a saber, o campo vermelho e três/ pescoços e
cabeças de serpe[nte]s de prata atadas com uma corda d´ouro e uma/ das cabeças
olha para a parte direita do escudo e a outra para a outra/ parte e a do meio
para cima, elmo de prata aberto guarnecido d´ouro paqui/fe d´ouro, prata e
vermelho e por timbre os três pescoços com as cabeças/ que saem do elmo, o qual
escudo, armas e sinais possa trazer e traga/ o dito licenciado mestre Diogo
assim como as trouxeram e delas usaram seus antecessores e os nobres/ e antigos
fidalgos sempre costumavam as trazer em tempo dos meus es/clarecidos Reis meus
antecessores e com eles possa entrar em batalhas/ campos, duelos, ritos,
escaramuças e desafios e exercitar com elas todos os outros lícitos de guerra e
de paz e assim os possam trazer em seus firmais, anéis, sinetes e divisas
pô-las em suas/ casas e edifícios e deixá-las sobre sua própria sepultura e
final/ mente se servir e honrar gozar e aproveitar delas em tudo como a sua/
nobreza convém, porém mando a todos, meus corregedor, desembargador, juiz e/
justiças e alcaides, isto é, em especial aos meus Reis/ d´armas, arautos e/
paçonantes e a quaisquer outros oficiais e pessoas a que esta minha/ carta for
mostrada e o conhecimento dela pertencer que em todo lha cumpram/ e guardem e
façam cumprir e guardar como em ela é conteúdo sem/ dúvida nem embargo algum
que lhe em ele seria posto por que assim é/ minha mercê, dada em a minha mui
nobre e sempre leal cidade/ de Évora aos XIII dias d´outubro el-Rei o mandou
pelo bacharel António/ Rodrigues, Portugal seu Rei d´armas principal Pêro
d´Évora Rei d´armas Algarve e escrivão da nobreza a fez [no] ano do nosso
senhor Jesu[s]/-Cristo de mil e quinhentos trinta e cinco anos].
Mestre Diogo, físico e cirurgião do Hospital
de Todos-os-Santos de Lisboa, invocando a sua origem aragonesa, dizendo-se
descendente por "linha direita e masculina de geração e linhagem dos
Alfaros" (fidalgos de cota
d'armas), pede a D. João III que a sua condição de nobre lhe seja reconhecida.
O monarca manda inquirir e confirmar as suas armas, nos "livros dos
registos das armas dos nobres e fidalgos"
de seus Reinos e ordena um pedido de informações para Aragão, a fim de
se certificar da legitimidade afirmada por Alfaro quanto ao seu estatuto de
fidalgo. Confirmada a sua verdadeira condição, é-lhe reconhecido o direito às
armas, com "brasão, elmo e timbre". Tal como as "trouxeram e
delas usaram seus antecessores e os nobres e antigos sempre as costumavam trazer"
no tempo dos esclarecidos reis, seus antecessores, assim as poderia usar
Diogo Alfaro a partir de agora.
Parecer-nos-ia, pois, lícito concluir que o
nosso físico, originário de uma geração aragonesa de “Alfaros”, tendo recebido
do "Piedoso" armas bem
diferentes das dos seus antepassados, não continuou propriamente a sua antiga
linhagem, apenas iniciou um novo ramo em Portugal. Esta ligação entre Mestre
Alfaro e a linhagem de Aragão, depois da inquirição determinada pelo monarca,
parece não deixar margem para dúvidas. Mas como se justificam brasões tão
diferentes?
Albergaria e M. Mascarenhas, genealogistas
que se debruçam sobre o percurso e as origens dos Alfaros na Península Ibérica,
não só os situam no Reino de Aragão como afirmam também a sua presença em Jaen
e em Sevilha.
"Em Aragão são muito antigos e há
morgados ricos deste apelido em Jaen e [em] Sevilha, aonde usam por armas um
escudo partido, no primeiro campo de ouro, dois bastonetes verdes e no segundo
meia lua de prata e campo de azul".
"Esta família foi ilustre e antiga. No
Reino de Aragão tomou o seu apelido da Vila de Alfaro conquistada aos mouros
pelos fidalgos cujos descendentes a tomavam o cognome e os há também em Jaen e
Sevilha, cujas armas traz Agnote de Molina na sua nobreza e de Andaluzia e as
repete Villas Boas nas suas Nobiliarquias."
O facto de, aparentemente, existirem duas
linhas de Alfaros, os de Aragão e os da Andaluzia (eventualmente saídas do
mesmo tronco comum), e de termos que admitir que o "Piedoso" reconhece a Diogo Alfaro "brasão, elmo e
timbre como aqui são divisados e assim como fiel e verdadeiramente se achavam
divisados e registados em os livros dos Registos do dito Portugal meu Rei d´armas"
, isto é, concede-lhe o direito de usar as armas dos seus antepassados
aragoneses, leva-nos a pensar que tais armas nada tinham a ver com as dos
espanhóis do mesmo nome conforme pudemos acima constatar pela descrição de
Albergaria. Deste modo, na total ausência de outra referência, notícia ou
gravura alusiva a qualquer outro brasão usado por Alfaros espanhóis, para além
daquele que aparece descrito pelo autor da obra Triunfos de la Nobleza, supracitado, temos de admitir duas
possibilidades: ou não tivemos acesso ao verdadeiro e original brasão dos
Alfaros Aragoneses, apesar das nossas esforçadas diligências de investigação e
só o podemos conceber através da réplica de armas concedidas a Diogo Alfaro ou
as palavras de D. João III (a que se refere a nota sete anterior) não pretendiam
significar a reprodução exata das armas dos seus antepassados, obedecendo à
mesma disposição estética e simbólica. Inclinando-nos para esta última
hipótese, pensamos que o "Piedoso", querendo simbolizar o acto de
conversão ao cristianismo de Diogo Alfaro, reconhecendo-o como nobre e, atribuindo-lhe
título e brasão, não tinha em mente
conceder-lhe as velhas armas da sua linhagem aragonesa, por serem estranhas
entre nós, e pretendera apenas reconhecer que tinha direito a elas "tal
como as trouxeram e delas usaram seus antecessores", outorgando-lhe um
novo brasão mais identificado com o simbolismo, com o espírito e com a natureza
da nobiliarquia portuguesa.
A leitura deste título na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura,
cujo texto se revela de um modo geral concordante com o exposto na carta régia
mandada passar por D. João III, reforça um pouco mais as nossas convicções
acerca do assunto.
"(...) certo mestre Diogo de Alfaro, de
geração hebraica, conhecido pelo [o] 'da cabeleira' e natural da vila deste
nome, foi médico do Rei D. Manuel I e D. João III lhe deu armas novas no ano de
1535 (e não, como diz o Armorial Lusitano,
D. Manuel I, que já tinha morrido nessa data)" .
O responsável por esta descrição aponta-nos
como bibliografia- Julio de Atienza, editado pelo Gab. Est. Heráld., obra a que
não tivemos acesso.
Pretenderia o autor do texto acima
transcrito, ao usar a expressão — armas
novas —, definir o aparecimento, pela primeira vez na cena da nobreza e
fidalguia portuguesas, da família Alfaro representada pelas armas que compõem o
brasão atribuído a Mestre Diogo, ou deve subentender-se pelas suas palavras
que o rei quisera assim diferenciá-las
das espanholas com o mesmo nome?
Nas suas "advertências à nobiliarquia
portuguesa", Francisco Coelho (Rei d'armas), afirma ter ainda visto as
armas dos Alfaros, gravadas em "sepultura no Cruzeiro da Igreja de S.
Domingos misturadas com as armas dos Villa-Lobos".
Consultadas várias obras sobre Genealogia e
Heráldica portuguesas pudemos constatar que mestre Diogo se aponta como o
iniciador em Portugal da família Alfaro, não se lhe reconhecendo outros
antecedentes linhagísticos no território nacional. A ascendência de Diogo
Alfaro deverá manter-se como uma questão a reequacionar exigindo, se possível,
futuras investigações.
Finalmente, uma última consideração nos
parece pertinente. Porquê, um homem de ascendência judaica reconhecido como
nobre e agraciado com honras de fidalgo de cota d´armas, precisamente nesta
data, 1535, ano que antecede a instituição do Santo Ofício em Portugal? A
ascensão de um cristão-novo à nobreza portuguesa, não obstante a sua profissão
de físico na Corte, é nesta década, indiscutivelmente, um acontecimento curioso
e invulgar.
Em Triunfos
de la Nobleza, manuscrito sem datação a que já aludimos anteriormente, o
seu autor não só situa os Alfaros espanhóis no Reino de Aragão, apontando-os
como conquistadores da vila mourisca de Alfaro, como parece considerar ser esta
a naturalidade de mestre Alfaro. Localiza, no entanto, "a vila de Alfaro
em Castela". Todavia, se atentarmos que o Reino de Aragão se fundiu com
Castela em 1475, não nos parecerá desprovida de senso aquela afirmação. E, mais
adiante, continua: "Ao doutor mestre Diogo Alfaro, deu o rei D. Manuel por
armas um campo (...), e por haver nascido Alfaro, deu-lhe el-Rei tal apelido,
honrando-o por ser grande letrado e acudir ao seu serviço com pontualidade,
mostrando-se muito prático e doutor em medicina (...) e, sendo hebreu de
nascimento, pediu baptismo(...)" .
Reflectindo sobre a transcrição supracitada
constatamos que o seu autor, sem mencionar a fonte ou fontes de que se serviu,
para além de atribuir incorretamente ao "Venturoso" aquela graça
régia, refere-se a Mestre Alfaro designando-o não como licenciado mas
"doutor em medicina", estatuto este que não pudemos realmente comprovar
a partir da leitura da carta Joanina.
Do Teatro
Genealógico, obra atrás citada da autoria de José Freire Monterroyo
Mascarenhas (falecido em 1760), transcreve-se o seguinte: "Este era hebreu
de Nação e 'mui douto em Medicina' na qual faculdade serviu muito ao senhor Rei
D. Manuel e com grande pontualidade converteu-se à nossa Santa fé Católica e o
mesmo Rei lhe fez mercê (...) de o fazer Nobre e fidalgo de cota de armas
dando-lhe por Brasão (...)" .
Perante as afirmações destes dois últimos
autores, afiguram-se-nos algumas conclusões imediatas. Embora desconhecendo a
datação do primeiro documento apontado, poderemos pôr a hipótese de ter sido
uma das fontes usadas por Mascarenhas para a elaboração da sua obra. Por outro
lado, ambos os genealogistas o identificam como hebreu convertido ao
cristianismo. Todavia, quando se referem à pontualidade de Alfaro, enquanto o
discurso do primeiro (Albergaria) não
deixa margem a dúvidas (pelas corretas sintaxe e pontuação), o texto do
segundo, quase sem pontuação, pode induzir-nos em duas interpretações
diferentes: Alfaro, homem letrado e físico de D. Manuel, cumprindo as suas
funções com zelo e pontualidade, de condição hebraica mas manifestando-se
cristão ao pedir que o baptizassem, teria caído nas graças do monarca, pelo que
lhe foram concedidas as honras de nobreza; ou então, o rei, apreciando acima de
tudo a pontualidade (prontidão) com que Alfaro se convertera à Santa Fé
Católica, tê-lo-ia recompensado.
Acrescente-se, ainda, que os dois autores
enfermam do mesmo erro, quando atribuem a D. Manuel a mercê concedida a Diogo
Alfaro.
Perante a leitura de Mascarenhas,
atrevemo-nos também a concluir que ou este conhecia perfeitamente o escrito do
autor espanhol e ali bebera parte da sua informação ou, circunstancialmente,
utilizou a(s) mesma(s) fonte(s) de Albergaria. Inclinamo-nos para a primeira
hipótese. Por referência colhida no Guia
de Manuscritos da Ajuda, soubemos que o Teatro
Genealógico, atrás citado, fora mandado copiar por João de Souza Coutinho
no ano de 1741. Face a este último dado pensamos poder afirmar que Triunfos de la Nobleza se trata
efetivamente de um escrito mais antigo, anterior, portanto, àquela data.
Francisco António M. Bastos, autor de onde
bebemos a primeira notícia sobre a existência de Diogo Alfaro em Portugal, a
qual iria ser ponto de partida deste estudo, apenas nos cita Mascarenhas como
fonte na sua obra, Nobiliarquia Médica.
Deste modo, Bastos enfermaria inevitavelmente dos mesmos erros que se apontam
àquele autor espanhol sobre este tema.
"Mestre Diogo Alfaro. hebreu de Nação, e
mui douto em Medicina, na qual faculdade serviu muito ao Senhor Rei D. Manuel,
convertendo-se à nossa santa fé católica, e o mesmo rei lhe fez mercê de o
fazer nobre e fidalgo de Cota de Armas".
Alfredo Luiz Lopes, no seu estudo O Hospital de Todos-os-Santos, embora
fornecendo-nos alguns dados importantes para este estudo, não nos elucida sobre
as fontes onde pesquisou tais informações e acaba também por insistir no mesmo
erro historiográfico, ao atribuir a D. Manuel a "mercê do grau de nobre e
fidalgo de cota de armas" concedida
a Diogo Alfaro.
Diogo
Alfaro: o homem e a época
Mestre Alfaro, de ascendência hebraica, mais
conhecido pela sua alcunha — o da cabeleira —, terá surgido na cena portuguesa
durante o reinado de D. Manuel I e é nesta Corte que vem a atingir uma posição
bastante privilegiada como médico real e físico-mor do Reino.
Morreria este monarca e D. João III subiria
ao trono, em 1521. Mestre Alfaro, bem visto entre a nobreza e os cortesãos da
casa real, continuaria as suas funções como físico do rei.
Quanto à sua formação universitária,
desconhece-se onde teve lugar, se em Portugal se no estrangeiro. Contudo, se
atendermos ao que acontecia habitualmente nessa época, em que se procurava
além-fronteiras (em especial, Espanha e França) uma preparação académica
considerada de vanguarda, Salamanca e/ou Alcalá, importantes escolas médicas
espanholas poderão ter sido eventualmente frequentadas por Diogo Alfaro.
No exercício das suas funções praticou e
ensinou a arte médica no Hospital de Todos-os-Santos, em Lisboa. Por nomeação
em 9 de Julho de 1528, terá exercido o cargo de físico , em substituição de
Rodrigo Rebello e o de cirurgião,
substituindo Mestre Vasco.
Apesar da época, em que judeus e cristãos-novos
de todos os estratos socioprofis-sionais e económicos, alguns de grande renome,
temiam cair nas malhas da Inquisição (instituída em Espanha desde 1478) que se
suspeitava ser brevemente implantada em Portugal, Mestre Alfaro viria a ser um
verdadeiro privilegiado.
Mas a História é assim mesmo, feita de
contrastes, paradoxos, enigmas e factos insólitos. E enquanto muitos tiveram
que abandonar o país devido à crescente insegurança que a sua condição
religiosa lhes acarretava no seio da sociedade portuguesa e ibérica em geral,
este cristão-novo viria a ser agraciado pelo mesmo monarca responsável pela
instalação da "máquina inquisitorial", aqui instituída em 1536.
Inteligente e prudente, adere prontamente ao
cristianismo, deixando-se baptizar.
Aparentemente sem ter escrito o que quer que
seja no domínio da ciência médica, cumpridor de horários, prontamente
convertido à Fé Cristã, bem aceite como físico na Corte, eventualmente também
conselheiro real, Diogo Alfaro receberia de D. João III, em 1535, uma prova de
elevado reconhecimento expressa na mercê régia que o tornaria "nobre e
fidalgo de cota d'armas", com direito a "brasão, elmo e timbre".
O seu
brasão consistia no seguinte: em campo vermelho, três cabeças de serpe de
prata, com os respectivos pescoços, cortados, enfeixados e atados de oiro; a
cabeça do meio, montante, e as dos lados, em fugida. O timbre, constituído
pelos moventes do escudo, isto é, pelos pescoços e cabeças de serpe.
Analisadas as várias descrições disponíveis
sobre os Alfaros portugueses, não nos foi possível estabelecer,
definitivamente, a sua ascendência genealógica e nobiliária, dificuldade, de
resto, semelhante às dos diversos especialistas interessados por este assunto. Mas
enquanto alguns autores e documentos remetem as suas origens para a família
Aragonesa com o mesmo nome, outros parecem considerar a existência de duas
árvores genealógicas, uma em Aragão e outra na Andaluzia, limitando-se apenas a
situar a naturalidade de Diogo Alfaro na vila do mesmo nome, localizada na
província de Logronho, vila essa tomada aos mouros pelos Alfaros espanhóis
durante a reconquista.
Relativamente à origem das armas que depois
de reconhecida a sua condição de nobre lhe seriam outorgadas também não há certezas
definitivas. Bem diferentes das [únicas] que se conhecem como pertencentes aos
Alfaros espanhóis, as armas atribuídas por
D. João III a Diogo Alfaro, iniciador da linhagem portuguesa com o mesmo
nome, tudo leva a crer terem sido concepção heráldica de cunho eminentemente
nacional. E a completa ausência de outras referências documentais e
bibliográficas alusivas a qualquer outro brasão usado pelos nobres e fidalgos
aragoneses seus antecessores, para além daquele de que há notícia, permite-nos
concluir que as tais armas novas
referidas na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, longe de serem
réplicas das velhas armas de família, foram realmente uma inovação por vontade
expressa do rei e por exigência das próprias normas regulamentadoras de acesso
à nobiliarquia portuguesa.
Considerações
finais
Exumado e transcrito o documento que
consideramos a fonte principal deste estudo biográfico (carta régia de D. João
III), deparámo-nos com o problema das relações precisas entre a nova linhagem
portuguesa iniciada com Mestre Alfaro e a espanhola com o mesmo nome, cujos
brasões são claramente diferentes, aclarámos alguns aspetos relacionados com a
vida deste físico e pudemos sobretudo corrigir definitivamente um erro
historiográfico "perpetuado" por diversos historiadores que trataram
este tema: foi efetivamente D. João III e não D. Manuel I quem nobilitou Diogo
Alfaro, médico cristão-novo do século XVI.
Bibliografia
ALBERGARIA, Triunfos de la Nobleza, Biblioteca Nacional de Lisboa [Códice
1119].
BAENA, Visconde de Sanches de, Arquivo Heráldico-Genealógico, Lisboa,
s. t., 1872.
BASTOS, Francisco António Martins, Nobiliarquia Médica: notícia dos médicos e
cirurgiões da Real Câmara, Lisboa, Imprensa União Tipográfica, 1858.
BOLETIM da
Faculdade de Medicina de Lisboa, Lisboa, F.M.L., Nº 33, Abril.1988.
ENCICLOPÉDIA Luso-Brasileira de Cultura, Vol. I,
Lisboa, Editorial Verbo, s. d.
GRANDE
ENCICLOPÉDIA Portuguesa e Brasileira, Vol. I,
Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Lda., s. d.
MASCARENHAS, José Freire Monterroyo, Guia de Manuscritos da Ajuda, Mss. da
Real Biblioteca de S. Majestade (Biblioteca da Ajuda), Lisboa, s.n., s. d.
MASCARENHAS, José Freire Monterroyo, Teatro Genealógico, Biblioteca da Ajuda
(Lisboa) , s. d. [47-XIII-17]
MATOS, Armando de, Brasonário de Portugal, Vol. I, s. n. t.
PINTO, Albano da Silveira, Resenha das Famílias Titulares e Grandes de
Portugal, Lisboa, s. n., s. d.
********
Diogo Alfaro, um médico hebreu nobilitado por
D. João III
Abstract
In this article, the author researches, clarifies and rectifies the
biographic knowledge of an hebrew physician of the 16th century which,
curiously, in 1535, one year before the
emergence of the inquisition in Portugal, in an age in which the jewish did not
have great security in the country, received from the king the acknowledgement of the condition of "noble and lord of coat of arms". The charter
issued in Évora transcribed and published, in 1535, according to the
Chancellery of D. João III, Book 47, sh. 26 and 26 v., the author, finally,
proceeds to the correction of an historiographic error perpetuated by several
authors as well as by many hanwritten and printed sources which indicate
[wrongly] D. Manuel as the concessor of that title of nobility.