sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O SENTIDO MÁGICO NA RELAÇÃO MÉDICO-DOENTE

O Sentido Mágico na Relação Médico-Doente
 
 
A magia, marca identificativa da “primeira infância” cultural da Humanidade, depois de vários milhões de anos de evolução biológica e civilizacional, persiste no inconsciente de cada ser humano, latente, como uma luz de presença permanente.
A longevidade da magia sugere, exatamente, o seu profundo enraizamento no psique do homem.[1]
Apoiando-se em James Frazer e nos seus conceitos míticos e mágicos, reguladores, em absoluto, do comportamento de todas as sociedades “ditas primitivas” (modelos analógicos de importância fundamental para a compreensão, apenas aproximada, da realidade espiritual, psicológica e mental do Homem pré-histórico), Sigmund Freud traça a sua visão evolutiva da sociedade e da criança. Na sua ótica, a magia e os seus processos lógicos regulam, realmente, os ritmos de crescimento ideológico e conceptual do Homem.
O Homem social, na sua natural evolução, dependente durante milénios da magia que criou, aperfeiçoou e utilizou na expetativa de controlar, em seu proveito, todas as forças da Natureza e do Cosmos, acaba por se consciencializar de que todos os ritos e esforços nem sempre compensaram ou serviram os seus objetivos. E quando desacredita na magia, volta-se para o racionalismo e envereda pela via da ciência. Mas as marcas do pensamento original, arquétipos indesmentíveis do pré-racionalismo que carateriza os seus primeiros estádios culturais, não mais se apagariam.
Do mesmo modo, a criança, na concepção de Freud, ao constatar a sua impotência para dominar o mundo, consciente de que os obstáculos e barreiras surgidos dia-a-dia não são transpostos pelos recurso a fórmulas, ritos e passes mágicos, acaba, inevitavelmente, por substituir o imaginário pela realidade, quando o seu amadurecimento mental e psicológico se processa de um modo espontâneo e natural. Mas, tal como para a criança a magia é saudável pelo seu efeito adaptativo e harmonizante, possibilitando que na sua consciência se estruture, de um modo suave, a necessária dissociação entre o mítico e o real, também nas sociedades “ditas  primitivas” ela vai servir como regulador dos mais diversos comportamentos e funções.
Jean Piaget, também ele, debruçado sobre a magia defendeu e mostrou que até à idade de seis ou sete anos todos os seres humanos vivem num mundo mágico, partilhando crenças e hábitos com o passado remoto não menos do que com o primitivo moderno.[2]
Na sua ligação íntima à magia e aos seus ritos, o homem, sempre com o objetivo de dominar e moldar em seu proveito todos os fenómenos naturais, viria a descobrir procedimentos e técnicas eficazes, sobretudo no domínio da fitoterapia, conhecimentos estes de reconhecido interesse farmacológico.
Os médicos-xamãs, fiéis depositários desta sabedoria milenar, não desenvolveram, apenas, esta vertente terapêutica. Cultivaram a hipnose, o gesto e a palavra e demonstraram a sua força curativa. O envolvimento do terapeuta e do doente, numa destas sessões, não se circunscreve(ria), estritamente, a este binómio. Todo o coletivo, no fundo, a família extensa de que faz parte, está presente, assiste e participa, em corpo e espírito, a este cerimonial de cura.
A pessoa-doente, nestas sociedades simples, é uma peça vital e a sua incapacidade afeta, necessariamente, toda a comunidade que, entre caçadores-coletores, raramente ultrapassa os trinta indivíduos, englobando homens, mulheres e crianças. Assim, se alguém adoece altera-se, completamente, toda a dinâmica do grupo. E a explicação da doença é sempre conotada, direta ou indiretamente, com a comunidade. A esfera social e relacional assume a primeira prioridade na análise superficial que o terapeuta estabelece, com vista a atalhar o problema. Um tabu não respeitado, uma malquerença, um mau olhado, uma praga, um feitiço lançado por alguém descontente ou inimigo constituem, em primeira instância, as causas da enfermidade. Além destas, há outras mais temíveis: as entidades sobrenaturais e demoníacas que apenas são suscetíveis às artes da magia branca ou negra. Os deuses e os demónios, capazes de gerar doença e cura, desde que devidamente invocados por especialistas, xamãs, curandeiros e feiticeiros, respondem normalmente aos apelos humanos, persuasivos e reforçados pela força mágica dos ritos.
A sessão xamânica, mistura de psicoterapia, de hipnose e de fitoterapia (administram-se, frequentemente, beberragens preparadas a partir de produtos e substâncias de origem vegetal, com uma real eficácia terapêutica) pode parecer um ato primitivo à luz dos conceitos e valores que norteiam a medicina científica. Todavia, não só constitui o único recurso médico possível para muitos povos do Planeta como se revela eficaz, garantindo a cura ou o alívio dos doentes.
O médico, sacerdote e mágico, autoridade reconhecida e prestigiada, detentor de grandes capacidades esotéricas, capaz de mobilizar a vontade dos homens e dos deuses, procura a explicação de todos os fenómenos no domínio do sobrenatural mas não descura o contexto microcósmico, retratado na realidade concreta de ordem natural e social. Essa perceção proto-racionalista traduz a própria evolução mental e cultural do Homem, enquanto ser dotado de racionalidade e de inteligência.
O racionalismo de feição hipocrática irrompido no V século antes de Cristo, corrente, também ela, heterodoxa, perante um pré-racionalismo convicto e ancestralmente instituído como via única de acesso ao conhecimento e à verdade, acabaria por se impor e marcar o ritmo do pensamento médico.
A corrente do saber médico, na sociedade ocidental, vai-se afastando, cada vez mais, da magia e da religião, marcas desse pré-racionalismo milenar (bem arreigado no pensamento coletivo) e, alicerçada no experimentalismo, atinge, finalmente, no século XIX a meta científica. Mas alguns dos ritos, crenças, superstições e conceitos mágicos em redor do binómio doença-cura, remanescências marginais ao processo de cientificidade, jamais desapareceriam. Assim, persistentes no tempo, viriam a assumir-se como recursos paralelos à ciência médica, com adeptos fervorosos e em grande número, contabilizados, sobretudo, entre as comunidades simples de todo o Mundo.
Por outras razões, bem compreendidas, decerto, numa ótica sociológica, o recurso a práticas médicas tradicionais têm hoje, no final do século XX, um eco de grande expressão mesmo nas sociedades ditas evoluídas. Talvez, por isso mesmo, James Frazer considere a magia como uma irmã bastarda da ciência.
O próprio ato médico racionalisto-científico, obrigatoriamente hipocrático nos princípios éticos e deontológicos é, acima de tudo, um fenómeno com uma grande carga mágica não, obviamente, pelos processos e técnicas objetivos utilizados, mas pelo ambiente contextual, holístico e subjetivo que cada relação médico-doente exige e determina. Hipócrates, atento à importância dos múltiplos fatores intrínsecos e extrínsecos de ordem orgânica, psicofisiológica e genética, ambiental e climatológica, traça no seu tratado “Dos ares, águas e lugares” uma panorâmica clara do modo como a saúde e a doença deverão ser encaradas, quer no domínio etiopatogénico quer no domínio da terapêutica curativa e preventiva, realçando, pela primeira vez, na História Médica, a perspetiva da globalidade do fenómeno saúde-doença. É evidente que a avaliação exaustiva do doente e das suas queixas implica uma história clínica rigorosa e essa condução não pode dispensar uma empatia profunda com o paciente. Só assim poderá ser possível determinar a causa ou causas da enfermidade e gerar, ao mesmo tempo, a necessária confiança e colaboração do doente no cumprimento terapêutico.
A força curativa da palavra, já pressentida e desenvolvida entre os xamãs, é encarada ao logo de séculos como uma das mais eficazes vias terapêuticas. O poder da sugestão verbal é, claramente, reconhecido a nível médico e o próprio D. João IV, a conselho dos seus físicos, concede a um soldado, por alvará, “Carta para curar” através da palavra, arte esta que o mesmo parece ter desempenhado com eficiência, tratando, segundo parece, grande número de militares estacionados no Alentejo. Satisfeito com o seu trabalho, o monarca tê-lo-ia, mesmo, agraciado com uma tença anual.[3]
Uma outra modalidade terapêutica, o toque ou imposição das mãos, do Rei, de Cristo ou de um Santo taumaturgo capaz de mobilizar energia benéfica e miraculosa, é apenas atributo de alguns, verdadeiramente dotados, iluminados ou escolhidos por Deus, os quais, através do simples contacto promovem a cura ou o alívio das mais diversas maleitas humanas. Colocando as mãos sobre a cabeça do paciente ou, diretamente, sobre órgãos doentes ou não funcionais, o terapeuta, fonte de energia medicinal de origem natural (cite-se o magnetismo, por exemplo) ou de ordem sobrenatural e mística, alcança curas que são, aos olhos dos doentes, autênticos milagres. A crença mágica funciona uma vez mais, quer do lado recetor quer do lado emissor.
Quando todas as circunstâncias e coincidências se conjugam e a cura parece, mesmo, ter resultado do toque real ou sacro-taumatúrgico, a crença, nas mentes sugestionáveis e simples, reforça-se um pouco mais.
Vespasiano, Imperador Romano no século I a.C., curava a cegueira pelo toque. O próprio Cristo dá vista aos cegos e marcha aos paralíticos pelo simples ato do gesto ou da palavra. Do mesmo modo, não só se acredita que Luís XIV, o Rei-Sol, promove curas, como nos garante André Du Laurens (Mestre em Montpellier na época), porque é dotado por Deus com a capacidade de sanar a escrófula tuberculosa (também designada por mal do rei) como vemos Carlos X, também rei de França, a ser procurado em 1824, já na era científica, para exercer o seu poder curativo através do toque. Mas as tradições francesas nestas artes tão sui generis, praticadas pela sua realeza, vêm muito de trás. O próprio Imperador Clóvis, da era Merovíngia, acreditava-se, curava também pelo simples contacto das mãos.
Entre os Ingleses, Eduardo, “O Confessor”(1002-1066), terá propiciado a cura a grande número de escrofulosos em 1056.[4]
As razões que induzem tanta gente a acreditar nestas e em outras formas terapêuticas, comummente praticadas em todos os tempos e em todas as épocas, deverão ser, como já o disséramos, compreendidas numa ótica eminentemente biopsicossociológica. Mas a magia ou algo semelhante, capaz de gerar esse fascínio, essa fé cega nestas vias de tratamento, afigura-se-nos, é dentre todas as explicações a que melhor traduzirá a natural dependência do homem dos seus impulsos ancestrais de índole pré-racionalista.
Outros aspetos, porém, marcam a realidade da medicina social contemporânea, ainda bem longe de ser acessível a todos no início do século XXI.
A cada vez mais utópica possibilidade da ciência médica estar ao alcance da maior parte da população planetária (face ao constante aumento demográfico e à penúria social verificados, sobretudo, no Terceiro Mundo), o elevado grau de tecnicismo médico e a crescente desumanização da própria medicina conduzem o doente à inevitável procura de soluções fora do contexto oficial ou convencional.
Em Portugal e, sobretudo, na região norte do País, onde os recursos sanitários só tardiamente têm vindo a instalar-se, o doente raramente procura, em primeira instância, o médico de formação oficial e, quando o faz, já percorreu uma longa trajetória pelos meios terapêuticos tradicionais em busca de solução para os seus problemas de saúde.
Não confiante e insatisfeito com o diagnóstico formulado pelo técnico de saúde a que recorreu, desconfiado e duvidoso relativamente à explicação que procurou obter sobre o seu mal, claramente desapontado perante o que lhe foi ou não dito, desiludido com esta consulta, no seu todo, muito aquém  das suas expetativas iniciais, sem o mínimo de convicção para cumprir qualquer tratamento aconselhado, o indivíduo, enfermo do corpo, do espírito ou do psíquico, acaba por não considerar, numa próxima oportunidade, a medicina oficial como uma primeira opção. Ou se gera o necessário elo mágico, verdadeira empatia  que aproxima o médico e o doente, e este desenvolve ou reforça a sua convicção de que os conselhos e orientações ouvidos do clínico são de absoluta confiança, a seguir, portanto, sem hesitação, ou o objetivo resultante desse importante binómio relacional não se concretiza minimamente. E não é de somenos importância o contacto físico entre o médico e o seu paciente, ansioso, angustiado, receoso, física e psicologicamente fragilizado. Um simples toque do médico, simbolizando conforto, solidariedade, compreensão ou carinho, exercido sobre a mão, sobre o braço ou as costas do doente, pode fazer milagres. O silêncio, a indiferença, a pressa ou a atitude evasiva assumidos pelo médico geram desconfiança e descrença imediatas.    
A repetição e a generalização deste  fenómeno  de  incompatibilidade  entre médico-doente gera uma espécie rejeição, um mito negativo em torno desse binómio. E o doente, se até aí tinha débeis convicções sobre o valor das medicinas alternativas ao seu alcance, volta-se, inevitavelmente, para estas áreas em busca de melhores respostas para os seus males e dúvidas. E como a procura acaba por determinar um aumento de oferta, à sua volta vai proliferando toda uma casta de oficiantes especializados nas demais diversas modalidades terapêuticas (bruxas, curandeiros, endireitas, etc.), grande parte deles verdadeiros charlatães sem qualquer preparação técnico-profissional, prontos a enriquecer à custa da ingenuidade e do sofrimento alheios.
Avassalados pela angústia da doença, pelas suas "disarmonias" espirituais e psicológicas, os descrentes da medicina oficial vão encontrar alívio para os seus males de natureza, predominantemente, psicossomática quando descobrem nestas “modalidades heterodoxas” de terapia as respostas e a compreensão que não obtiveram nem poderiam obter junto dos técnicos representantes da ciência médica. A explicação etiológica e o prognóstico não cruzam, obviamente, com as suas expectativas e muito menos com conceitos e ideias simplicistas do seu mundo simbólico, no qual a doença resulta sempre, em primeira análise, da interferência dos maus-espíritos ou espíritos-ruins. Através de fórmulas mágicas, de rezas e de exorcismos mais ou menos complicados, a cura pode ser obtida.
Amuletos e talismãs reforçam a ação destas práticas virtuosas e dos oficiantes sanadores ou taumaturgos. A variedade destes objetos resulta, naturalmente, da diversidade conceptual que cada povo e cultura concebe do seu mundo simbólico e mágico, dimensão transcendental de onde irradiam forças e agentes capazes de proteger a vida ou de causar a morte, a doença e a desgraça.
Desde a Pré-história, o homem tem procurado criar “antídotos”, cujo poder curativo e preventivo é fundamental para contrariar a ação maléfica das múltiplas entidades, visíveis e e invisíveis, que deambulam constantemente à sua volta.
No Paleolítico Superior e no Neolítico, os pedaços de crânio (rondelles) triangulares ou arredondados retirados nas trepanações  efetuadas pelos xamãs-cirurgiões, com vista a libertar, através de tais orifícios, os seres e forças malfazejos responsáveis pelo sofrimento do paciente eram, decerto, usados como amuletos e talismãs frequentemente pendurados ao pescoço, garantindo, deste modo, imunidade e proteção contra recidivas da doença ou quaisquer outras entidades perniciosas e perversas.
Mas o próprio ato cirúrgico da trepanação é executado ainda hoje entre comunidades simples da África Oriental, seguindo procedimentos e técnicas que em pouco deverão diferir  dos processos  seguidos  pelos cirurgiões da Pré-história.
Entre os Kisi, habitantes das margens do Lago Vitória, conhece-se, desde há muito, a prática da trepanação como medida terapêutica objetiva decidida e executada em casos de cefaleias intensas devido a hipertensão intracraniana, de mal-estar, vertigem e vómito subsequentes a traumatismo craniano, de enxaqueca renitente a todas as formas de tratamento ensaiadas pela medicina oficial ou tradicional.
Procurados, a maior parte das vezes e em primeira instância, pelos doentes, os cerca de quatro “neurocirurgiões” em exercício naquela região, na última década do século XX, eram responsáveis por uma média de duzentas trepanações/ano.
Apesar da possibilidade de poderem ser observados e operados em hospitais equipados com tecnologia e recursos científicos, em cidades próximas, estes pacientes, recorrem, convictamente, aos local-doctors e, não raro, acabam por se sujeitar a duas e mais trepanações, mesmo quando, após uma primeira tentativa, não obtêm quaisquer  melhoras.
Atualmente, e de acordo com as observações efetuadas pela equipe de especialistas alemães que se deslocou àquela região de África e ali pôde estudar de perto estas práticas, parece que o diagnóstico e a terapêutica são estabelecidos tendo em conta a lei causa-efeito. Deste modo, os fatores sobrenaturais e místicos não condicionarão, prioritariamente, as decisões médico-cirúrgicas, como terá acontecido durante os primeiros estádios culturais pré-racionalistas entre as comunidades pré-históricas. Todavia, a componente mágica não se dissocia completamente do cerimonial curativo e a sua importância evidencia-se, sobretudo, durante e após a intervenção, logo que o cirurgião retira o segmento da calote e o encéfalo fica visível no campo operatório. Nesta altura, sim, não vá o diabo tecê-las, recitam-se fórmulas mágicas, que são de uma grande eficácia protetora e impedem, assim, a entrada a qualquer entidade malfazeja através daquele crânio tão exposto e vulnerável. Enquanto a cicatrização do couro cabeludo não se processa e a continuidade tecidual não é restabelecida o perigo tem que ser combatido com a magia.
O que  levará,  então,  estes  doentes a  deixarem-se  operar  uma  ou  mais  vezes,  em  subcondições higiénicas, com instrumentos rudimentares (alguns deles, alfaias de cozinha) e, visivelmente, sem resultados muito animadores, a aferir pela casuística estabelecida a partir dos dados recolhidos por aqueles cientistas? A crença e a confiança cega na autoridade e na competência do médico, no poder mágico que ele detém sobre a saúde e sobre a doença, no seu mana[5], em suma.
Refletindo ainda, um pouco mais, sobre a importância simbólica dos objetos usados como protetores de doença por todas as comunidades, simples ou evoluídas, começaríamos por retrocessar às sociedades pré-clássicas, aos Babilónios. Entre este povo era comum o uso de placas com figuras demoníacas, as quais constituíam, de acordo com os seus conceitos mágico-simpáticos ou homeopáticos, a proteção fundamental contra os principais responsáveis pelas doenças: os demónios (demónio-febre, demónio-cefaleia, etc).
O mal protege do mal, o feio protege do feio[6]
Estas e outras crenças de índole mágica existem e continuarão, decerto, a persistir à nossa volta, como paradigmas do imaginário primitivo existente em cada um de nós.
Uma infinidade de objetos mágicos fazem parte do quotidiano de todas as sociedades e não só constituem o elo de ligação a esse arcaísmo espiritual e psicológico escondido em cada ser humano, como se revelam fatores harmonizantes dos medos e angústias que povoam o seu inconsciente.
O rabo e pata de coelho (para dar sorte), a figa, o chifre, a ferradura, o signo de Salomão (protetor de homens e animais), medalhas e medalhões com santas e santos, o ramo de oliveira trazido de Fátima e religiosamente guardado em casa, o terço benzido pelo sacerdote, pelo bispo ou pelo Santo Padre, as braceletes anti-reumatismais, etc, são apenas alguns desses objetos.
A fé move montanhas e a verdade é que alguns doentes, fortemente sugestionados pelos rituais mágicos ou místicos, pela força medicinal das poções e do diálogo e pelo ambiente esotérico que se gera durante estes cerimoniais, ou melhoram ou obtêm a cura definitiva das suas enfermidades.
À luz da ciência médica e de tudo o que de mais “sagrado” se defende como parâmetro ou princípio regulador da nobre arte de feição positivista e experimental, tais processos, de cariz eminentemente pré-racionalista, não devem ser admitidos e os seus propósitos e técnicas,  pretensamente  curativos,  devem ser,  como tal, repudiados. No entanto, verifica-se que, sejam quais forem os entraves de ordem política e legal criados ao exercício destas práticas no seio da sociedade Ocidental, há e continuará a haver indivíduos que, por não terem acesso à medicina científica ou por desacreditarem dela, buscam nessas vias alternativas soluções para os seus males. E quando, por mera coincidência, constatam a sua eficiência, mais se arreiga e reforça nos seus espíritos a convicção do seu valor e peso social.. É nessa eficácia, tendencialmente sobredimensionada pelas mentes simples, sugestionáveis ou ingénuas, que reside a chave da continuidade e sobrevivência destas práticas marginais à medicina oficial ou convencional. A dependência que ela (medicina tradicional), inevitavelmente, vai criando através de alguns êxitos, paradoxal aos olhos científicos, constitui matéria de estudo e de reflexão para sociólogos, antropólogos, psicólogos e médicos de reconhecida autoridade no domínio dos fenómenos socioculturais de expressão tradicional.
Assente em dois princípios fundamentais (segundo James Frazer, a lei da semelhança - magia imitativa ou homeopática e lei de contacto ou contágio - que traduz a ação recíproca das coisas, efetiva mesmo à distância, quando o contacto físico se desfez), a magia  é, para muitos antropólogos, uma arte e uma ciência.[7]
O igual atrai o igual. O semelhante produz o semelhante, desde que se acredite.
Esta perspetiva leva-nos à placebo-terapia, uma questão atual e de múltiplas implicações médicas, em especial, no foro bioético e deontológico.
Importa, primeiro que tudo, definir o placebo:
É uma medida terapêutica de eficácia nula ou fraca, sem relação lógica com a doença, mas com uma ação curativa real, desde que o indivíduo julgue estar a receber o tratamento ativo.[8] Esta reação parece dever-se, apenas, a mecanismos psicológicos ou psicofisiológicos que se despoletam no indivíduo quando este confia inteiramente no seu médico e nas suas prescrições.
Ainda que a placebo-terapia cientificamente orientada possa constituir uma medida polémica, discutível ou até reprovável sob o ponto de vista ético, os objetivos atingidos, ou seja a cura, justificam, em muitos casos a sua utilização.
Os resultados obtidos pela tomada de comprimidos ou pílulas, de soro fisiológico ou de soro glucosado, comparativamente aos dos fármacos objetivamente indicados e administrados através de criteriosos protocolos terapêuticos, constituem, algumas vezes, para os investigadores envolvidos em estudos de cinética e biodisponibilidade farmacológica autênticas surpresas: grupos de doentes sujeitos a placebos” revelam, em “ensaios cegos, índices de cura e de melhoria claramente superiores a outros que tomaram medicamentos de estrutura molecular ativa. Nesta circunstâncias, é lícito afirmar que a placebo-terapia, desde que criteriosamente estabelecida e instituída, não só pode resolver, em definitivo, algumas situações de natureza  psicossomática, como poupa o doente aos riscos de iatrogénese, problema sempre a ter em conta quando se usa qualquer fármaco.
Mas o placebo, tal como a definição deixa transparecer, não é apenas um recurso exclusivo do médico. O cirurgião, também ele pode fazer uso desta modalidade terapêutica. E se a definição ou clarificação do perfil psicofisiológico e, sempre que possível, espiritual dos seus doentes é, para o médico, fundamental, para o cirurgião é de vital importância. A incisão cirúrgica é encarada como uma invasão do “Eu”, como uma rutura com o mundo real e concreto, a qual pode ser temporária ou definitiva. J. Sournia pretende mesmo ver, nestes temores exacerbados de cada ser humano, o regresso dos fantasmas, dos mitos que povoam o mundo mágico da infância, “o médico que dá picas”, que corta, que pune o paciente porque detém esse poder e essa autoridade, desde sempre.[9]
O ato cirúrgico gera, inevitavelmente, temor. E as reações que acompanham este estado de espírito são, muitas vezes, difíceis de transpor e de controlar, dificultando, não só, a anestesia preparatória (pelo aparecimento de suores frios, tremores e quadros de distonia neurovegetativa) como ocasionando graves situações pós-operatórias. Entre estas últimas contam-se a abulia, a astenia e estados sérios de choque, dos quais, alguns doentes nunca chegam a recuperar. Compete, assim, ao cirurgião aferir com rigor o perfil de cada um dos seus pacientes, de modo a prevenir complicações irreversíveis. Mas esse importante esclarecimento só nos parece atingível quando a relação médico-doente se estrutura e define segundo uma práxis  verdadeiramente hipocrática, profunda e rigorosa no método, íntima e humanizada na atitude.
Cabe ao terapeuta o difícil papel de, com inteligência e arte, estabelecer essa ligação empática e mágica fundamental.
É evidente que nesse envolvimento profundo, às vezes quase místico, gerado entre paciente e cirurgião, criam-se dependências psicológicas algo complicadas. Há mesmo doentes, especialmente do sexo feminino, que, mercê das suas tendências masoquistas, se sujeitam a intervenções cirúrgicas sucessivas, mantendo, permanentemente, as mesmas queixas ou arquitetando outras, refletindo um grau de histeria hipocondríaca difícil de solucionar por esta ou por qualquer outra via terapêutica. A placebo-terapia cirúrgica é, no entanto, em alguns casos, diz-nos Sournia, a única alternativa de tratamento e, embora em confronto com todos os princípios éticos defendidos pela medicina científica, deve continuar a ser criteriosamente recomendada e executada.
Assim, por exemplo, uma simples cicatriz resultante de uma incisão superficial da pele ao nível do apêndice, desde que o doente tenha sido sujeito ao ritual de uma preparação anestésica e cirúrgica (aligeirada ou apenas simulada) e acredite ter sido operado e liberto do seu mal, pode resolver, de vez, as suas queixas de natureza psicossomática, até aqui renitentes a todos os esquemas terapêuticos ensaiados.
Na verdade, nem um doente deve ser considerado apenas um ser puramente físico, nem uma intervenção médica ou cirúrgica pode ser encarada como um ato estritamente mecânico, frio e desumanizado, nem e a cura resulta somente de uma boa técnica manual ou do rigoroso cumprimento de formulários ou protocolos terapêuticos. Não! Dependem, acima de tudo, de uma boa dose de magia e de espiritualidade, geradoras da empatia determinante do firme desejo de curar e de ser curado, nesse encontro especial, ainda que fortuito, estabelecido entre o médico e o doente.
 
Bibliografia
 
HOEBEL, E. Adamson e FROST, Everett L., Antropologia Cultural e Social, São Paulo, Editora Cultrix, 1984
LOBO, Elvira, A Doença e a Cura - recorrência à bruxaria na procura de saúde, Prefácio de Moisés espírito santo, V.Nova de Gaia, Estratégias criativas, 1995
MÉDECINE de France, Nº 209, Paris, Olivier Perrin Éditeur, 1970
MEDICINA e Saúde - História da Medicina, Vol. I, São Paulo, Abril Cultural, 1969
MIRA, Matias Boleto Ferreira de, História da Medicina Portuguesa, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1947
REVERTE, José M., Antropologia Médica I, Madrid, Editorial Rueda, 1981
SELIGMANN, Kurt, História da Magia, Colecção Esfinge, Lisboa, Edições 70, 1976
TITIEV, Mischa, Introdução à Antropologia Cultural, Traduç. de João Pereira Neto, Prefác. de Jorge Dias, 3ª Edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979
 
 
 


[1] Kurt Seligmann, História da Magia, Lisboa, 1976, p. 435.
[2] Idem, ibidem
[3] Matias Boleto F. de Mira, História da Medicina Portuguesa, Lisboa, 1947, p 181.
[4] “Ciência e superstição”, in Medicina e Saúde - História da Medicina, Vol. I, São Paulo, 1969, pp. 254-6.
[5] O mana, força poderosa que fica para além da compreensão, da observação direta ou do controlo do indivíduo comum, é um atributo sobrenatural de pessoas e coisas com uma ilimitada capacidade de modelar, provocar ou submeter vontades, atitudes ou fenómenos conotados com o Homem, com a Natureza ou com o Cosmos.
[6] Elvira Lobo, A Doença e a Cura- recorrência à bruxaria na procura da saúde, V.N.de Gaia, 1995, p.72.
[7] José M. Reverte, Antropologia Médica I, Madrid, 1981, pp. 421-30.
[8] Jean Charles Sournia, “Mythologies de la Médecine Moderne”, in Médecine de France, Nº 209, Paris, Olivien Perrin Éditeur, 1970, p. 20.
[9] Idem, p. 18.

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