domingo, 1 de fevereiro de 2015

COLÓQUIOS DOS SIMPLES E DROGAS E COUSAS MEDICINAIS DA ÍNDIA: UM PONTO DE ENCONTRO ENTRE A ALOPATIA E A HOMEOPATIA


“Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”: um ponto de encontro entre a Alopatia e a Homeopatia

 

 

Se há obras que devam ser consideradas verdadeiros paradigmas do Renascimento médico português, os “Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, de Garcia de Orta, são uma delas.

Mas se Garcia de Orta, médico quinhentista português, dentre tantos outros do seu tempo, parece ter sido especialmente bafejado pela sorte para atingir tamanha glória, através de uma obra que o imortalizaria, a História prova-nos exatamente o contrário. De origem judaica, numa época em que a Inquisição se esperava para breve em Portugal e, desde 1481, dava mostras de uma grande intolerância anti-semita em Espanha, Orta viveu a adversidade, sentiu a desilusão e a insegurança e terá pressentido que nem mesmo a sua condição de cristão-novo lhe dava grandes garantias num país avesso a tudo quanto não fosse "cristianismo de raiz". Por temer o pior, por ansiar o sossego que a Índia distante lhe parecia oferecer, talvez na mira da riqueza e da fortuna, partiu para o Oriente. Em Setembro de 1534 desembarcava em Goa. Aqui iria ser o seu porto dileto de abrigo e de trabalho até à data da sua morte, em 1568. 

Dotado de uma sólida formação universitária recebida nas universidades espanholas de Alcalá e Salamanca, crente e sensível em relação às novas perspetivas de investigação e de saber experiencialista, Orta, durante alguns anos, viaja por todo o Índico ao serviço do Martim Afonso de Sousa, seu amigo e protetor. Observando, refletindo sobre as medicinas tradicionais e os usos e costumes das gentes do Índico, tratando nobres e sultões e estabelecendo, sempre que lhe era possível, um frutuoso intercâmbio cultural com físicos hindus e árabes, Garcia de Orta conseguiria reunir a matéria fundamental dos seus Colóquios.

Conhecidos na Europa, através das diversas traduções iniciadas em 1567 por Charles L´Écluse (Clusius), botânico belga conhecedor atento da matéria médico-farmacológica analisada e descrita por Orta, os “Colóquios dos Simples e Drogas da Índia”, publicados em Goa no ano de 1563, iriam marcar, decisivamente, o grande momento de viragem do conhecimento farmacopeico no Mundo Ocidental. Mas se é verdade que a obra de Orta deva ser considerada como uma importante "chave" de acesso à Modernidade, em termos protocientíficos, tal instrumento só viria, realmente, a ser devidamente utilizado nos finais do século XVII. As Farmacopeias Londrinas, de 1617, 1650, 1677, seguidas também em Portugal, eivadas de "preparações estranhas e medievalescas", na opinião do historiador Pires de Lima, constituem a prova mais indesmentível da lenta ou quase nula evolução observada a nível farmacológico e terapêutico nas escolas médicas europeias.

Garcia de Orta, embora um homem do Renascimento, soube projetar-se muito para além da sua época e do seu tempo. Revolucionário pelos conceitos e ideias que defende, ousado pelo neo-método experimental que adota, este investigador, podemo-lo considerar como um dos pioneiros da Fitofarmacologia. O domínio profundo das virtudes curativas da Natureza Oriental e, em especial, da flora Índica, patente nos “Colóquios”, saber somente valorizado e aproveitado a partir do século XVIII, viria não só a integrar e a melhorar as possibilidades terapêuticas da medicina alopática (contraria contrariis curantur), emprestando-lhe novos recursos, "mais suaves e menos corrosivos",  como teria também influenciado o conhecimento da matéria médica que hoje constitui a homeopatia (similia similibus curantur).  

De uma lista imensa de produtos e substâncias de origem Oriental, ainda hoje utilizados por ambas as medicinas, destacamos os seguintes: Aloés, Assafétida, Canela ou Cinamomo, Cânfora, Cubeba, Gengibre, Noz Vómica, Ópio, Ruibarbo, Sene, etc. Representando, apenas, uma pequena amostra de um "arsenal terapêutico" natural muito mais vasto, estes produtos de origem vegetal, não obstante o método diferente de aproveitamento e preparação laboratorial a que são sujeitos, traduzem, quanto a nós, um elo de ligação, uma ponte importante entre a medicina alopática (oficial) e a medicina homeopática. Antagónicas nos métodos, em comunhão relativamente a muitos dos princípios terapêuticos  usados, em sintonia quanto aos objetivos comuns (aliviar ou corrigir totalmente o sofrimento do doente, conferindo-lhe saúde e/ou bem-estar), nenhuma destas duas "medicinas" deve ser encarada como rival ou substituta uma da outra. Perante os respetivos graus de eficácia retratados nos sucessos e limitações avaliadas pelos índices de insucesso, elas deverão ser consideradas, antes de mais, como duas atitudes terapêuticas  complementares.

 

INDICAÇÕES E EFEITOS TERAPÊUTICOS DE ALGUNS PRODUTOS E ESPÉCIES VEGETAIS

 

ALOÉS (suco de folhas de)

 

Alopáticos:

- Purgante

- Laxativo

- Colagogo

 

Homeopáticos:

- Colopatias funcionais crónicas ou agudas

- Incontinência fecal e urinária

- Hemorroidas.

 

ASSAFÉTIDA (goma resinada extraída de diversas espécies de Férulas)

 

Alopáticos:

- Espasmos da musculatura lisa  do trato gastrintestinal, das vias biliares e urinárias

- Palpitações

- Convulsões

- Asma

- Dismenorreia.

 

Homeopáticos:

- Aerofagia complicada

- Estimulante  da produção láctea materna

- Cáries dentárias

- Periostites

- Diarreia fétida

- Ozena.

 

CANELA ou CINAMOMO (casca de)

 

Alopáticos:

- Adstringente

- Tónico

- Estimulante

- Aromático.

 

Homeopáticos:

- Hemorragias puerperais e menorragias

- Epistaxis.

 

CÂNFORAS (compostos acetónicos extraídos de essências de canforeira, matricária e alecrim)

 

Alopáticos:

- Estimulante respiratório e cardíaco (em pequena dose)

- Excitante enérgico, por vezes convulsivante (em alta dose)

- Antisséptico fraco

- Antiespasmódico

- Revulsivo

- Balsâmico.

 

Homeopáticos:

- Estimulação respiratória e cardíaca

- Insónia

- Espasmos por asfixia do recém-nascido

- Priapismo

- Amenorreia

- Artralgias traumáticas e reumatismais (aplicação tópica).

 

CUBEBA (fruto de)

 

Alopáticos:

- Balsâmico

- Expetorante.

 

Homeopáticos:

- Uretrites e cistites

- Prostatites.

 

GENGIBRE (óleos e resinas de)

 

Alopáticos:

- Estimulante

- Estomáquico

- Sudorífico

 

Homeopáticos:

- Retenção aguda da urina

- Meno-metrorragias

- Patologia intestinal (cólicas, diarreia flatulenta e hemorroidas)

- Patologia respiratória (asma, bronquite e rouquidão).

 

NOZ VÓMICA (semente de)

 

Alopáticos (estricnina e brucina):

- Convulsivante

- Estimulante da excitabilidade neuronal, do peristaltismo digestivo e da acuidade dos sentidos.

 

Homeopáticos:

- Espasmofilia

- Dispepsias (náusea, vómito, etc.)

- Obstipação ocasional

- Enxaqueca

- Coriza e rinite alérgica.

 

ÓPIO (suco obtido por incisão das cápsulas de papoila)

 

Alopáticos:

- Hipnótico

- Somnífero

- Sedativo da dor (incluindo cólicas abdominais)

- Calmante de tosse. 

 

Homeopáticos:

- Insónias

- Obstipação

- Hipertensão arterial grave

- Oclusão intestinal

- Retenção urinária aguda

- Epilepsia e convulsões.

 

RUIBARBO (rizoma de)

 

Alopático:

- Anti-inflamatório

- Antibacteriano (bacteroides fragilis e candida albicans)

- Laxativo

- Queratolítico

- Adstringente e hemostático

- Retardamento da progressão de insuficiência renal crónica.

 

Homeopáticos:

- Cólica infantil

- Diarreia ácida aguda e crónica

- Mal-estar provocado pela 1ª primeira dentição.

 

SENE ( folíolos e vagens de)

 

Alopáticos:

- Laxativo

- Purgante

- Redutor da absorção de água no intestino

- Estimulante do peristaltismo

 

Homeopáticos:

- Cólica infantil por obstipação

- Crises de acetona (acetonúria), azotúria e fosfatúria.

 

Bibliografia

 

ORTA, Garcia da ― Colóquios dos Simples e Drogas da Índia. Dir. e notas de Conde de Ficalho. Lisboa: Imprensa Nacional, 1891, 2 vol.

 

João Frada

Professor Universitário (Ph.D.)

 

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