“Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas
Medicinais da Índia”: um ponto de encontro entre a Alopatia e a Homeopatia
Se há obras que devam ser consideradas
verdadeiros paradigmas do Renascimento médico português, os “Colóquios dos
Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, de Garcia de Orta, são uma
delas.
Mas se Garcia de Orta, médico quinhentista
português, dentre tantos outros do seu tempo, parece ter sido especialmente
bafejado pela sorte para atingir tamanha glória, através de uma obra que o imortalizaria,
a História prova-nos exatamente o contrário. De origem judaica, numa época em
que a Inquisição se esperava para breve em Portugal e, desde 1481, dava mostras
de uma grande intolerância anti-semita em Espanha, Orta viveu a adversidade,
sentiu a desilusão e a insegurança e terá pressentido que nem mesmo a sua
condição de cristão-novo lhe dava grandes garantias num país avesso a tudo
quanto não fosse "cristianismo de raiz". Por temer o pior, por ansiar
o sossego que a Índia distante lhe parecia oferecer, talvez na mira da riqueza
e da fortuna, partiu para o Oriente. Em Setembro de 1534 desembarcava em Goa.
Aqui iria ser o seu porto dileto de abrigo e de trabalho até à data da sua
morte, em 1568.
Dotado de uma sólida formação universitária
recebida nas universidades espanholas de Alcalá e Salamanca, crente e sensível
em relação às novas perspetivas de investigação e de saber experiencialista,
Orta, durante alguns anos, viaja por todo o Índico ao serviço do Martim Afonso
de Sousa, seu amigo e protetor. Observando, refletindo sobre as medicinas
tradicionais e os usos e costumes das gentes do Índico, tratando nobres e
sultões e estabelecendo, sempre que lhe era possível, um frutuoso intercâmbio
cultural com físicos hindus e árabes, Garcia de Orta conseguiria reunir a
matéria fundamental dos seus Colóquios.
Conhecidos na Europa, através das diversas
traduções iniciadas em 1567 por Charles
L´Écluse (Clusius), botânico belga conhecedor atento da matéria
médico-farmacológica analisada e descrita por Orta, os “Colóquios dos Simples e
Drogas da Índia”, publicados em Goa no ano de 1563, iriam marcar,
decisivamente, o grande momento de viragem do conhecimento farmacopeico no
Mundo Ocidental. Mas se é verdade que a obra de Orta deva ser considerada como
uma importante "chave" de acesso à Modernidade, em termos
protocientíficos, tal instrumento só viria, realmente, a ser devidamente
utilizado nos finais do século XVII. As Farmacopeias Londrinas, de 1617, 1650,
1677, seguidas também em Portugal, eivadas de "preparações estranhas e
medievalescas", na opinião do historiador Pires de Lima, constituem a
prova mais indesmentível da lenta ou quase nula evolução observada a nível
farmacológico e terapêutico nas escolas médicas europeias.
Garcia de Orta, embora um homem do
Renascimento, soube projetar-se muito para além da sua época e do seu tempo.
Revolucionário pelos conceitos e ideias que defende, ousado pelo neo-método
experimental que adota, este investigador, podemo-lo considerar como um dos
pioneiros da Fitofarmacologia. O domínio profundo das virtudes curativas da
Natureza Oriental e, em especial, da flora Índica, patente nos “Colóquios”,
saber somente valorizado e aproveitado a partir do século XVIII, viria não só a
integrar e a melhorar as possibilidades terapêuticas da medicina alopática (contraria contrariis curantur),
emprestando-lhe novos recursos, "mais suaves e menos
corrosivos", como teria também
influenciado o conhecimento da matéria médica que hoje constitui a homeopatia (similia similibus curantur).
De uma lista imensa de produtos e substâncias
de origem Oriental, ainda hoje utilizados por ambas as medicinas, destacamos os
seguintes: Aloés, Assafétida, Canela ou Cinamomo, Cânfora, Cubeba, Gengibre, Noz
Vómica, Ópio, Ruibarbo, Sene, etc. Representando, apenas, uma pequena amostra
de um "arsenal terapêutico" natural muito mais vasto, estes produtos
de origem vegetal, não obstante o método diferente de aproveitamento e
preparação laboratorial a que são sujeitos, traduzem, quanto a nós, um elo de
ligação, uma ponte importante entre a medicina alopática (oficial) e a medicina
homeopática. Antagónicas nos métodos, em comunhão relativamente a muitos dos
princípios terapêuticos usados, em
sintonia quanto aos objetivos comuns (aliviar ou corrigir totalmente o sofrimento
do doente, conferindo-lhe saúde e/ou bem-estar), nenhuma destas duas
"medicinas" deve ser encarada como rival ou substituta uma da outra.
Perante os respetivos graus de eficácia retratados nos sucessos e limitações
avaliadas pelos índices de insucesso, elas deverão ser consideradas, antes de
mais, como duas atitudes terapêuticas
complementares.
INDICAÇÕES E EFEITOS TERAPÊUTICOS DE ALGUNS
PRODUTOS E ESPÉCIES VEGETAIS
ALOÉS (suco de folhas de)
Alopáticos:
- Purgante
- Laxativo
- Colagogo
Homeopáticos:
- Colopatias funcionais crónicas ou agudas
- Incontinência fecal e urinária
- Hemorroidas.
ASSAFÉTIDA (goma resinada extraída de
diversas espécies de Férulas)
Alopáticos:
- Espasmos da musculatura lisa do trato gastrintestinal, das vias biliares
e urinárias
- Palpitações
- Convulsões
- Asma
- Dismenorreia.
Homeopáticos:
- Aerofagia complicada
- Estimulante
da produção láctea materna
- Cáries dentárias
- Periostites
- Diarreia fétida
- Ozena.
CANELA ou CINAMOMO (casca de)
Alopáticos:
- Adstringente
- Tónico
- Estimulante
- Aromático.
Homeopáticos:
- Hemorragias puerperais e menorragias
- Epistaxis.
CÂNFORAS (compostos acetónicos extraídos de
essências de canforeira, matricária e alecrim)
Alopáticos:
- Estimulante respiratório e cardíaco (em
pequena dose)
- Excitante enérgico, por vezes convulsivante
(em alta dose)
- Antisséptico fraco
- Antiespasmódico
- Revulsivo
- Balsâmico.
Homeopáticos:
- Estimulação respiratória e cardíaca
- Insónia
- Espasmos por asfixia do recém-nascido
- Priapismo
- Amenorreia
- Artralgias traumáticas e reumatismais
(aplicação tópica).
CUBEBA (fruto de)
Alopáticos:
- Balsâmico
- Expetorante.
Homeopáticos:
- Uretrites e cistites
- Prostatites.
GENGIBRE (óleos e resinas de)
Alopáticos:
- Estimulante
- Estomáquico
- Sudorífico
Homeopáticos:
- Retenção aguda da urina
- Meno-metrorragias
- Patologia intestinal (cólicas, diarreia
flatulenta e hemorroidas)
- Patologia respiratória (asma, bronquite e
rouquidão).
NOZ VÓMICA (semente de)
Alopáticos (estricnina e brucina):
- Convulsivante
- Estimulante da excitabilidade neuronal, do
peristaltismo digestivo e da acuidade dos sentidos.
Homeopáticos:
- Espasmofilia
- Dispepsias (náusea, vómito, etc.)
- Obstipação ocasional
- Enxaqueca
- Coriza e rinite alérgica.
ÓPIO (suco obtido por incisão das cápsulas de
papoila)
Alopáticos:
- Hipnótico
- Somnífero
- Sedativo da dor (incluindo cólicas
abdominais)
- Calmante de tosse.
Homeopáticos:
- Insónias
- Obstipação
- Hipertensão arterial grave
- Oclusão intestinal
- Retenção urinária aguda
- Epilepsia e convulsões.
RUIBARBO (rizoma de)
Alopático:
- Anti-inflamatório
- Antibacteriano (bacteroides fragilis e
candida albicans)
- Laxativo
- Queratolítico
- Adstringente e hemostático
- Retardamento da progressão de insuficiência
renal crónica.
Homeopáticos:
- Cólica infantil
- Diarreia ácida aguda e crónica
- Mal-estar provocado pela 1ª primeira
dentição.
SENE ( folíolos e vagens de)
Alopáticos:
- Laxativo
- Purgante
- Redutor da absorção de água no intestino
- Estimulante do peristaltismo
Homeopáticos:
- Cólica infantil por obstipação
- Crises de acetona (acetonúria), azotúria e
fosfatúria.
Bibliografia
ORTA, Garcia da ― Colóquios dos Simples e Drogas da
Índia. Dir. e notas de Conde de Ficalho. Lisboa: Imprensa Nacional,
1891, 2 vol.
João Frada
Professor
Universitário (Ph.D.)
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