Doenças infecciosas mais mortíferas na sociedade planetária, ao longo da História, e respectivas respostas sanitárias para a sua erradicação ou contenção.
PREÂMBULO. IN: FRADA, João – Pandemias de Gripe A (H1N1) em Portugal (1918-2009): ecos e cismas do passado no presente. 2ª edição bilingue (Português/Inglês). Lisboa: Clinfontur edições; 2012. [Texto revisto e atualizado]
PARTE I
“As epidemias marcaram, desde sempre, os ritmos da Civilização. E não só determinaram importantes transformações no processo cultural, mental e técnico do Homem (sempre movido pela sua natural tendência em compreender e controlar todos os fenómenos mórbidos), como ocasionaram, enquanto factores de natureza epidemiológica e demográfica, alterações profundas nos sistemas sociais, políticos e económicos.
Os reflexos, imediatos e tardios, resultantes da acção da peste negra de 1348 sobre a sociedade medieval são, para grande número de historiadores, o exemplo mais paradigmático do que acabámos de dizer.
Fortemente estruturado na Igreja e nos seus valores e, como é óbvio, no próprio feudalismo (em Portugal, sem grande expressão), o modelo de vivência medieval, não restam dúvidas, entrou em falência quando as populações, ceifadas pela terrível epidemia, foram desaparecendo e quando os sobreviventes passaram a interrogar-se sobre a inconsistência dos velhos dogmas e certezas, especialmente inerentes à saúde e à doença. Duvidando da imunidade garantida pela mística e pela fé cristãs, ousando pôr em dúvida a teoria do contágio por desígnio divino(1), os espíritos mais insatisfeitos da Baixa Idade Média identificavam-se já com uma nova forma de pensar, em suma, com um novo Homem.
A varíola, também ela um flagelo ao longo de séculos, originando a morte ou deixando marcas terríveis no corpo e no rosto das suas vítimas (a célebre cabeça mumificada do sacerdote egípcio de Amon é, decerto, um dos testemunhos mais antigos da sua acção lesiva), seria, finalmente, dada como extinta em 1977. Os primeiros passos da medicina com vista à sua definitiva contenção viriam a pertencer a Edward Jenner, o qual, depois de ter verificado a imunidade dos tratadores de vacas contra a varíola, realizou com êxito, em 1796, a primeira vacinação contra a doença. Desde então até aos finais dos anos 70, a comunidade internacional, através de programas e acções planificados pela Organização Mundial de Saúde (instituição especializada das Nações Unidas, fundada em 1948), entre os quais se destaca o PAV (Programa Alargado de Vacinação), viria a conseguir a erradicação completa da doença no Planeta. Cólera, febre amarela e tuberculose, também estas entidades têm constituído e são, ainda hoje, um sério desafio para todos os agentes da saúde mundial. Ao longo de um século de medicina científica desenvolveram-se vacinas e fármacos com grande eficácia terapêutica. Estes ganhos e avanços da medicina, em contraste gritante com as condições médico-assistenciais e o nível higiénico e sanitário que caracterizavam a Idade Média e grande parte da Época Moderna, por si só, deveriam constituir um factor limitativo ao aparecimento de surtos epidémico-pandémicos de natureza viral ou bacteriana, na contemporaneidade. Todavia, os mesmos mecanismos geradores das crises demográficas do passado mantêm-se hoje presentes e assumem-se, porventura, como factores tendencialmente reguladores do tremendo desequilíbrio verificado no binómio recursos-população, já pressentido e formulado por Malthus nos finais do século XVIII. Os críticos do malthusianismo defendem que o autor setecentista do Ensaio sobre o Princípio da População e as suas ideias não só entraram, rapidamente, em decadência como se tornaram inaplicáveis à realidade do século XX, «paradigma da industrialização, do desenvolvimento e do bem-estar».
As novas estratégias políticas, teoricamente, tenderão a conciliar medidas económicas com medidas demográficas, a produção será desenvolvida e racionalizada. O emprego, apesar de nunca pleno, tenderá a ser superior ao desemprego, o subsídio de desemprego e as reformas assegurados e as reformas assegurados pelo Estado-Providência evitarão as condições de miséria e de fome, e o nível de vida razoável das populações, desfrutando, nestas circunstâncias, de uma medicina social cada vez mais evoluida e apoiada no planeamento familiar e em cuidados de saúde primários criteriosamente estabelecidos, conduzirá, invariavelmente, à negação do malthusianismo pessimista.
No entanto, o desemprego no Ocidente sobe em crescendo e o aumento da longevidade, a diminuição da natalidade e a senilização populacional põem em risco, cada vez mais, as garantias de continuidade do Estado-Providência. À medida que se criam novas soluções, a população, senil em grande número, cairá na indigência e na miséria e constituirá, por isso mesmo, um alvo predilecto das mais diversas doenças e epidemias. Mas se, por enquanto, a célebre tetralogia carestia/fome/imunodepressão/doença não parece ser no Velho Mundo, com uma produção excedentária, um factor endógeno responsável por graves crises demográficas, já o mesmo não acontece no Terceiro Mundo. Apesar dos esforços envidados pelos países desenvolvidos e do sério empenhamento de muitas organizações intergovernamentais e não governamentais, envolvidas na procura e implementação de estratégias e soluções capazes de minimizar o tremendo desequilíbrio económico e social visível entre os povos do chamado eixo Norte-Sul, a verdade é que os países do Norte continuam mais ricos e os do Sul vão ficando, cada dia, mais pobres.
As guerras, as secas, as inundações, as pragas, a carestia, a fome e as epidemias são, actualmente, um cenário comum entre as comunidades dos países «ditos» em via de desenvolvimento.
Nesta «aldeia global», crises, doenças ou quaisquer outros problemas surgidos em locais mais ou menos recônditos e isolados, mercê de uma dependência internacional cada vez maior e, ao mesmo tempo, de uma enorme facilidade de comunicação e movimentação de homens e animais, podem alastrar rapidamente a todos os continentes desencadeando, por vezes, perturbações de reflexos gigantescos.
Os microrganismos, que não conhecem fronteiras, circunstancialmente irrompidos dos seus habitats naturais e instalados nos seus habituais hospedeiros, homens e animais, vão assim circulando livremente de país para país, de continente para continente, gerando, cada vez com maior frequência, estados de alarme e de preocupação bem demonstrativos da grande vulnerabilidade de todo o ser humano e de todas as sociedades a estes agentes.
As doenças de carácter infecto-contagioso provocadas pelo vibrião do Cólera, pelo vírus de MARBURG ou pelo vírus ÉBOLA, este último responsável, em 1995 e em 2000, por um considerável número de mortes na África Central e Equatorial, constituem a prova inequívoca de que, mesmo nos finais do século XX, início do século XXI, a Humanidade e a ciência médica não têm conseguido controlar, por completo, os agentes patogénicos, sejam eles vírus, bactérias, fungos ou protozoários.
E mesmo quando a medicina julga dispor de soluções preventivas e/ou curativas para tais doenças e a imunidade passiva ou activa parece poder garantir algumas certezas para «amanhã», a instabilidade etológica e ecológica da Natureza determina constantes alterações imunogenéticas, quer em hóspedes quer em hospedeiros, e tudo parece voltar ao ponto zero.
PARTE II
Há, claramente, populações melhor imunizadas do que outras contra determinadas doenças.
Na Época Moderna, por exemplo, os Europeus (Espanhóis, em particular), rumando a outros continentes, levaram consigo sarampo, gripe, rubéola e outras entidades mórbidas com as quais facilmente conviviam, desde há séculos, sem grandes problemas. Desconhecendo, em absoluto, a carga potencialmente letal que transportavam – microrganismos, alguns deles, de grande virulência –, contagiaram as comunidades do Novo Mundo (Incas, Aztecas e Maias), as quais, sem defesas imunitárias contra tais agentes, acabariam por ser praticamente dizimadas.
Dispomos hoje de estudos que consideram, inequivocamente, a acção daquelas impremeditadas armas biológicas sobre as populações ameríndias, na Época dos Descobrimentos, como tendo sido mais mortífera do que a própria guerra.
Uma vez que não ficou ainda completamente provada a nova teoria de Acuna-Soto sobre a causa de extinção dos cerca de 22 milhões de Astecas, desencadeada por um terrível surto epidémico de febre hemorrágica, devido à acção do vírus cocolitzli, agente patogénico até agora não observado/identificado pela microbiologia, resta-nos a velha convicção de que a morte desta Civilização se ficou mesmo a dever, em grande parte, à acção de doenças arrastadas pelos europeus para o continente Sul-Americano. (2)
A razia demográfica observada entre as comunidades autóctones da América Central e da América do Sul na Era Colombiana, detentoras de conhecimentos técnicos consideravelmente evoluídos para a época e dispondo de exércitos numerosos e bem preparados, só parece, pois, poder ser compreendida pela debilidade que as doenças bacterianas e virais de índole europeia terão desencadeado sobre os seus organismos, sem o mínimo de imunidade contra tais agentes patogénicos, até aí desconhecidos naquele sistema ecológico. Hoje, a medicina dispõe de um arsenal de conhecimentos e de uma logística que pretende ser coordenada, eficaz e actuante, quer através de mecanismos normais accionados por cada Estado, quer pela própria OMS, esta última responsável por uma alargada estratégia sanitária, cobrindo todas as áreas do Globo.
Assim, nesse esforço conjugado de políticas de saúde desenvolvidas, sobretudo a partir de 1948, o século XX caracteriza-se por uma extensa actividade no domínio preventivo, com vista a reduzir os elevados custos desencadeados pelas doenças e pelo elevado número de mortes registado, especialmente, nas regiões tropicais. Esta vastíssima acção no domínio higiénico e sanitário tem-se centrado na implementação de programas de vacinação massiva (PAV--OMS), nas regulamentações relativas à alimentação e às condições de habitação, nos controlos de fronteiras, nas campanhas de desratização e de desmosquitização (as campanhas desenvolvidas pelos Portugueses em África, contra o paludismo e contra a doença do sono, reduziram significativamente o impacto destas terríveis enfermidades sobre as populações), no saneamento das águas de consumo, na difusão de regras elementares de higiene pública e doméstica e no estabelecimento de convenções de natureza sanitária entre os mais diversos países que compõem o sistema internacional. Todavia, a eficácia desta acção preventiva multidireccional só é observável se, dentro e fora de cada país, reinarem a ordem, a paz e a segurança e as populações puderem dispor de um mínimo de recursos para garantirem uma vivência relativamente condigna.
Neste «grande pátio», onde parecem conviver todos os países, basta haver um que caia ou viva na desorganização e na pobreza temporária, geradas pela anarquia económica, por calamidades ou guerras, e os fenómenos epidemiológicos de natureza infecciosa, de relativamente endémicos e controlados, passam a epidémicos e acabam, quantas vezes, por assumir proporções devastadoras. Os países mais desenvolvidos, de um modo geral melhor equipados medicamente, respondem com grande eficácia e prontidão a esses surtos ou crises. Mas um país pobre, Africano, Sul-Americano ou Asiático, cuja população é, seguramente, mal equipada no domínio médico-sanitário, subnutrida e imunitariamente frágil, sentirá com maior violência a crise demográfica despoletada por qualquer epidemia.
Se até agora a medicina tem conseguido suster no limes ou "fora de portas" essas ameaças, cada vez mais frequentes no Terceiro Mundo, e o desenvolvimento da imunoterapia e da engenharia genética nos deixa antever, para um futuro relativamente próximo, a produção de armas terapêuticas (anticorpos, soros e vacinas) contra os demais antigénios, as certezas de amanhã quanto ao comportamento dos microrganismos são, para nós, uma incógnita. Tal como o ser humano vai sobrevivendo, criando novos recursos e imunidades contra os agentes mórbido-letais que pululam à sua volta, também a Natureza evolui e, durante esse processo, todas as outras espécies vivas, incluindo as patogénicas, sofrem constantemente transformações a nível genético. Deste modo, os genótipos mais favorecidos, quando encontram um terreno favorável, independentemente dos esforços de contenção ou de controlo médico-científico, podem determinar autênticas razias, parecendo reflectir, em alguns casos, uma acção aparentemente reguladoro-demográfica. Ter-se-á, pois, de admitir que os recursos terapêuticos de ponta surgidos entre os finais do século XX e o século XXI, pura e simplesmente, tem sido e continuarão a ser ultrapassados por estes agentes patogénicos, perfeitamente adaptados e sempre situados, podemos dizê-lo, um passo à frente da medicina científica.
Nesta visão algo sombria, mas real, do Mundo, em que a redistribuição de recursos não funciona e em que perecem, diariamente, milhares de pessoas (directa ou indirectamente devido à fome e à miséria), enquanto não surgir uma nova geração de homens-máquina, resistentes a tudo e capazes de substituir o homo sapiens em toda a sua dimensão vivencial, os microrganismos responsáveis por surtos epidémicos ou pandémicos irão continuar a exercer a sua acção mórbida e letal.
Teoricamente, as políticas de saúde desenvolvidas por todos os Estados do século XXI, a par dos esforços desenvolvidos por múltiplas organizações sanitárias espalhadas e activas em todos os continentes, deveriam ser mais do que suficientes para controlar, prevenir e minorar quaisquer riscos epidémicos, poupando assim as populações aos dramas e ao temor que, outrora, pesavam no quotidiano social. [Mas as certezas e previsões no domínio da microbiologia e da parasitologia, apesar dos grandes avanços científicos, nunca virão a ser possíveis de estabelecer com rigor absoluto. Futurologia, neste domínio, como noutros, é ainda matéria hermética e intransponível para a ciência. Todavia, ponderar sobre a enorme possibilidade de expansão de uma doença tremendamente infecciosa, como o ÉBOLA, perante as miseráveis condições sociais e higiénico-sanitárias dos povos onde esta e outras patologias infecciosas são, desde sempre, constantes flagelos, não é um exercício intelectual tão transcendental. Adivinha-se, a qualquer momento. Este último surto viral, em 2014, bem demonstrativo das fragilidades e incapacidades sanitárias, quer dos países onde a doença é endémica quer da própria sociedade ocidental, tecnológica e medicamente mais avançada, é a prova irrefutável dessa imprevisibilidade tão inquietante.
A sociedade Ocidental, pontualmente alvejada pelo vírus, acordou para o perigo eminente de uma epidemia incontrolável e, apoiada na OMS e nos seus próprios serviços sanitários, apressou-se a definir, não só, protocolos de controlo e prevenção epidémica, dentro e fora das suas fronteiras, como decidiu, finalmente, envidar esforços redobrados na produção e ensaio de novos antivíricos e fármacos, com algum sucesso (Favipiravir, Brincidofovir, Zmapp, TKM–Ébola). Temporariamente, o perigo parece ter sido debelado. Mas, enquanto houver miséria e iliteracia como aquelas que caracterizam grande parte das sociedades africanas, qualquer patologia infecciosa local pode virar epidémica ou pandémica.]
Neste Planeta, marcado por profundas diferenças sociais e económicas, grassarão, inevitavelmente, as velhas doenças e virão, decerto, a aparecer e a difundir-se novos microrganismos com carácter virulento. Nessa medida, o esforço de combate farmacológico e terapêutico assumido pela medicina poderá vir a ser debalde. Os recursos médicos e tecnológicos poderão, de facto, periclitar perante tais flagelos. A Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA) é disso exemplo.
Quando a ciência não parece dispor de qualquer saída medicamentosa, curativa ou profiláctica, para o combate de uma doença que se assume epidémica e mortífera, uma vez mais, a velhíssima medida da quarentena (cumprida por inteiro ou reduzida), instituída durante a Idade Média como a melhor regra preventiva contra a peste, volta a funcionar com eficácia. Isolam-se os doentes ou os suspeitos de contágio. Circunscrevem-se o espaço e os contactos dos contagiados ou que se julga estarem contaminados. Barram-se os acessos a regiões, locais ou países afectados. Fecham-se fronteiras e aeroportos.
Vigiam-se portos e todos os pontos de entrada e de saída. Obrigam-se a fundear e a permanecer ao largo as embarcações oriundas de áreas contagiadas, em regime de quarentena. O tempo define e resolve tudo. Funciona a selecção natural. Morrem os mais débeis. Convalescem e curam-se os mais resistentes com ou sem apoio médico-farmacológico. Cometem-se exageros quando, porventura, se estabelece o corte radical, ainda que temporário, de comunicações com países e comunidades onde a doença prolifera; revivem-se temores e fantasmas de sabor medieval e dissolvem-se, com frequência, os laços e o sentido da humanização e da solidariedade, quer enquanto valores individuais, quer enquanto expressão colectiva.
Por maior evolução que a ciência médica apresente e as técnicas ao seu serviço possibilitem, o ser humano ter-se-á de confrontar sempre com novos desafios, doenças e flagelos, explicáveis ou não à luz da epidemiologia do seu tempo. Nesse duelo permanente, para além dos velhos ensinamentos que a voz da experiência colectiva foi firmando e dos recursos disponíveis à satisfação das exigências de cada época, há princípios indeléveis que, hoje e sempre, são o garante da continuidade e da sobrevivência do Homem, conferindo-lhe um lugar ímpar no reino animal: tolerância, altruísmo, humanização, solidariedade e cooperação.
Só através da orientação ou definição de um estilo de vida inteligente e ecológica e de uma união eficaz de esforços e vontades, a nível intra ou extra-planetário, o «homem de amanhã» pode fazer face aos microrganismos virulentos ou a quaisquer outros agentes patogénicos, velhos ou novos, de carácter epidémico ou não.
Mas se o futuro é, em si mesmo, um enigma neste domínio, as certezas do presente não deixam margem para dúvidas e requerem toda a nossa atenção: em todo o Mundo morrem anualmente mais de 75 000 000 de pessoas, devido a doenças infecciosas. Talvez seja este o preço que a Humanidade terá sempre de pagar à Natureza, pela forma como nela se integra e dela se serve, ameaçando e destruindo, constantemente, elementos vitais à sua natural dinâmica e harmonia e pondo, assim, em causa alguns dos principais mecanismos responsáveis pelo equilíbrio ecológico global.”
(1) Coevos da grande peste negra de 1348, dois médicos hispano-árabes terão sido as primeiras vozes a discordarem das explicações místicas, pré-racionalistas, atribuídas à contagiosidade da doença. Ibn Al-Khatib, numa obra sua, "Compendium de epidemia per Collegium Facultatis Medicorum Parisiis ordinatum", considerado dos primeiros tratados descritivos da peste, põe pela primeira vez em causa a etiologia divina da mesma e avança com a possibilidade de o contágio se poder processar através do contacto com objectos pessoais do doente, ideias não só originais como heréticas, naquela época. Um outro físico, Ibn Khatimah, com uma larga experiência clínica no tratamento de empestados, conclui também que a doença é altamente contagiosa, já que, com grande probabilidade, um indivíduo em contacto com um pestoso acaba por contrair as mesmas queixas: «se o doente expectorava sangue, o contagiado fazia o mesmo (peste pulmonar); se o pestoso era bubónico, o segundo também o seria» (ROQUE, Mário da Costa - As Pestes Medievais Europeias e o «Regimento Proveitoso contra a Pestenença». Lisboa/Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português; 1979. p. 59-60).
(2) What killed the Aztecs? (http://www.solopassion.com/node/1304).
João Frada
Professor Universitário (Ph.D.) da FML
PREÂMBULO. IN: FRADA, João – Pandemias de Gripe A (H1N1) em Portugal (1918-2009): ecos e cismas do passado no presente. 2ª edição bilingue (Português/Inglês). Lisboa: Clinfontur edições; 2012. [Texto revisto e atualizado]
PARTE I
“As epidemias marcaram, desde sempre, os ritmos da Civilização. E não só determinaram importantes transformações no processo cultural, mental e técnico do Homem (sempre movido pela sua natural tendência em compreender e controlar todos os fenómenos mórbidos), como ocasionaram, enquanto factores de natureza epidemiológica e demográfica, alterações profundas nos sistemas sociais, políticos e económicos.
Os reflexos, imediatos e tardios, resultantes da acção da peste negra de 1348 sobre a sociedade medieval são, para grande número de historiadores, o exemplo mais paradigmático do que acabámos de dizer.
Fortemente estruturado na Igreja e nos seus valores e, como é óbvio, no próprio feudalismo (em Portugal, sem grande expressão), o modelo de vivência medieval, não restam dúvidas, entrou em falência quando as populações, ceifadas pela terrível epidemia, foram desaparecendo e quando os sobreviventes passaram a interrogar-se sobre a inconsistência dos velhos dogmas e certezas, especialmente inerentes à saúde e à doença. Duvidando da imunidade garantida pela mística e pela fé cristãs, ousando pôr em dúvida a teoria do contágio por desígnio divino(1), os espíritos mais insatisfeitos da Baixa Idade Média identificavam-se já com uma nova forma de pensar, em suma, com um novo Homem.
A varíola, também ela um flagelo ao longo de séculos, originando a morte ou deixando marcas terríveis no corpo e no rosto das suas vítimas (a célebre cabeça mumificada do sacerdote egípcio de Amon é, decerto, um dos testemunhos mais antigos da sua acção lesiva), seria, finalmente, dada como extinta em 1977. Os primeiros passos da medicina com vista à sua definitiva contenção viriam a pertencer a Edward Jenner, o qual, depois de ter verificado a imunidade dos tratadores de vacas contra a varíola, realizou com êxito, em 1796, a primeira vacinação contra a doença. Desde então até aos finais dos anos 70, a comunidade internacional, através de programas e acções planificados pela Organização Mundial de Saúde (instituição especializada das Nações Unidas, fundada em 1948), entre os quais se destaca o PAV (Programa Alargado de Vacinação), viria a conseguir a erradicação completa da doença no Planeta. Cólera, febre amarela e tuberculose, também estas entidades têm constituído e são, ainda hoje, um sério desafio para todos os agentes da saúde mundial. Ao longo de um século de medicina científica desenvolveram-se vacinas e fármacos com grande eficácia terapêutica. Estes ganhos e avanços da medicina, em contraste gritante com as condições médico-assistenciais e o nível higiénico e sanitário que caracterizavam a Idade Média e grande parte da Época Moderna, por si só, deveriam constituir um factor limitativo ao aparecimento de surtos epidémico-pandémicos de natureza viral ou bacteriana, na contemporaneidade. Todavia, os mesmos mecanismos geradores das crises demográficas do passado mantêm-se hoje presentes e assumem-se, porventura, como factores tendencialmente reguladores do tremendo desequilíbrio verificado no binómio recursos-população, já pressentido e formulado por Malthus nos finais do século XVIII. Os críticos do malthusianismo defendem que o autor setecentista do Ensaio sobre o Princípio da População e as suas ideias não só entraram, rapidamente, em decadência como se tornaram inaplicáveis à realidade do século XX, «paradigma da industrialização, do desenvolvimento e do bem-estar».
As novas estratégias políticas, teoricamente, tenderão a conciliar medidas económicas com medidas demográficas, a produção será desenvolvida e racionalizada. O emprego, apesar de nunca pleno, tenderá a ser superior ao desemprego, o subsídio de desemprego e as reformas assegurados e as reformas assegurados pelo Estado-Providência evitarão as condições de miséria e de fome, e o nível de vida razoável das populações, desfrutando, nestas circunstâncias, de uma medicina social cada vez mais evoluida e apoiada no planeamento familiar e em cuidados de saúde primários criteriosamente estabelecidos, conduzirá, invariavelmente, à negação do malthusianismo pessimista.
No entanto, o desemprego no Ocidente sobe em crescendo e o aumento da longevidade, a diminuição da natalidade e a senilização populacional põem em risco, cada vez mais, as garantias de continuidade do Estado-Providência. À medida que se criam novas soluções, a população, senil em grande número, cairá na indigência e na miséria e constituirá, por isso mesmo, um alvo predilecto das mais diversas doenças e epidemias. Mas se, por enquanto, a célebre tetralogia carestia/fome/imunodepressão/doença não parece ser no Velho Mundo, com uma produção excedentária, um factor endógeno responsável por graves crises demográficas, já o mesmo não acontece no Terceiro Mundo. Apesar dos esforços envidados pelos países desenvolvidos e do sério empenhamento de muitas organizações intergovernamentais e não governamentais, envolvidas na procura e implementação de estratégias e soluções capazes de minimizar o tremendo desequilíbrio económico e social visível entre os povos do chamado eixo Norte-Sul, a verdade é que os países do Norte continuam mais ricos e os do Sul vão ficando, cada dia, mais pobres.
As guerras, as secas, as inundações, as pragas, a carestia, a fome e as epidemias são, actualmente, um cenário comum entre as comunidades dos países «ditos» em via de desenvolvimento.
Nesta «aldeia global», crises, doenças ou quaisquer outros problemas surgidos em locais mais ou menos recônditos e isolados, mercê de uma dependência internacional cada vez maior e, ao mesmo tempo, de uma enorme facilidade de comunicação e movimentação de homens e animais, podem alastrar rapidamente a todos os continentes desencadeando, por vezes, perturbações de reflexos gigantescos.
Os microrganismos, que não conhecem fronteiras, circunstancialmente irrompidos dos seus habitats naturais e instalados nos seus habituais hospedeiros, homens e animais, vão assim circulando livremente de país para país, de continente para continente, gerando, cada vez com maior frequência, estados de alarme e de preocupação bem demonstrativos da grande vulnerabilidade de todo o ser humano e de todas as sociedades a estes agentes.
As doenças de carácter infecto-contagioso provocadas pelo vibrião do Cólera, pelo vírus de MARBURG ou pelo vírus ÉBOLA, este último responsável, em 1995 e em 2000, por um considerável número de mortes na África Central e Equatorial, constituem a prova inequívoca de que, mesmo nos finais do século XX, início do século XXI, a Humanidade e a ciência médica não têm conseguido controlar, por completo, os agentes patogénicos, sejam eles vírus, bactérias, fungos ou protozoários.
E mesmo quando a medicina julga dispor de soluções preventivas e/ou curativas para tais doenças e a imunidade passiva ou activa parece poder garantir algumas certezas para «amanhã», a instabilidade etológica e ecológica da Natureza determina constantes alterações imunogenéticas, quer em hóspedes quer em hospedeiros, e tudo parece voltar ao ponto zero.
PARTE II
Há, claramente, populações melhor imunizadas do que outras contra determinadas doenças.
Na Época Moderna, por exemplo, os Europeus (Espanhóis, em particular), rumando a outros continentes, levaram consigo sarampo, gripe, rubéola e outras entidades mórbidas com as quais facilmente conviviam, desde há séculos, sem grandes problemas. Desconhecendo, em absoluto, a carga potencialmente letal que transportavam – microrganismos, alguns deles, de grande virulência –, contagiaram as comunidades do Novo Mundo (Incas, Aztecas e Maias), as quais, sem defesas imunitárias contra tais agentes, acabariam por ser praticamente dizimadas.
Dispomos hoje de estudos que consideram, inequivocamente, a acção daquelas impremeditadas armas biológicas sobre as populações ameríndias, na Época dos Descobrimentos, como tendo sido mais mortífera do que a própria guerra.
Uma vez que não ficou ainda completamente provada a nova teoria de Acuna-Soto sobre a causa de extinção dos cerca de 22 milhões de Astecas, desencadeada por um terrível surto epidémico de febre hemorrágica, devido à acção do vírus cocolitzli, agente patogénico até agora não observado/identificado pela microbiologia, resta-nos a velha convicção de que a morte desta Civilização se ficou mesmo a dever, em grande parte, à acção de doenças arrastadas pelos europeus para o continente Sul-Americano. (2)
A razia demográfica observada entre as comunidades autóctones da América Central e da América do Sul na Era Colombiana, detentoras de conhecimentos técnicos consideravelmente evoluídos para a época e dispondo de exércitos numerosos e bem preparados, só parece, pois, poder ser compreendida pela debilidade que as doenças bacterianas e virais de índole europeia terão desencadeado sobre os seus organismos, sem o mínimo de imunidade contra tais agentes patogénicos, até aí desconhecidos naquele sistema ecológico. Hoje, a medicina dispõe de um arsenal de conhecimentos e de uma logística que pretende ser coordenada, eficaz e actuante, quer através de mecanismos normais accionados por cada Estado, quer pela própria OMS, esta última responsável por uma alargada estratégia sanitária, cobrindo todas as áreas do Globo.
Assim, nesse esforço conjugado de políticas de saúde desenvolvidas, sobretudo a partir de 1948, o século XX caracteriza-se por uma extensa actividade no domínio preventivo, com vista a reduzir os elevados custos desencadeados pelas doenças e pelo elevado número de mortes registado, especialmente, nas regiões tropicais. Esta vastíssima acção no domínio higiénico e sanitário tem-se centrado na implementação de programas de vacinação massiva (PAV--OMS), nas regulamentações relativas à alimentação e às condições de habitação, nos controlos de fronteiras, nas campanhas de desratização e de desmosquitização (as campanhas desenvolvidas pelos Portugueses em África, contra o paludismo e contra a doença do sono, reduziram significativamente o impacto destas terríveis enfermidades sobre as populações), no saneamento das águas de consumo, na difusão de regras elementares de higiene pública e doméstica e no estabelecimento de convenções de natureza sanitária entre os mais diversos países que compõem o sistema internacional. Todavia, a eficácia desta acção preventiva multidireccional só é observável se, dentro e fora de cada país, reinarem a ordem, a paz e a segurança e as populações puderem dispor de um mínimo de recursos para garantirem uma vivência relativamente condigna.
Neste «grande pátio», onde parecem conviver todos os países, basta haver um que caia ou viva na desorganização e na pobreza temporária, geradas pela anarquia económica, por calamidades ou guerras, e os fenómenos epidemiológicos de natureza infecciosa, de relativamente endémicos e controlados, passam a epidémicos e acabam, quantas vezes, por assumir proporções devastadoras. Os países mais desenvolvidos, de um modo geral melhor equipados medicamente, respondem com grande eficácia e prontidão a esses surtos ou crises. Mas um país pobre, Africano, Sul-Americano ou Asiático, cuja população é, seguramente, mal equipada no domínio médico-sanitário, subnutrida e imunitariamente frágil, sentirá com maior violência a crise demográfica despoletada por qualquer epidemia.
Se até agora a medicina tem conseguido suster no limes ou "fora de portas" essas ameaças, cada vez mais frequentes no Terceiro Mundo, e o desenvolvimento da imunoterapia e da engenharia genética nos deixa antever, para um futuro relativamente próximo, a produção de armas terapêuticas (anticorpos, soros e vacinas) contra os demais antigénios, as certezas de amanhã quanto ao comportamento dos microrganismos são, para nós, uma incógnita. Tal como o ser humano vai sobrevivendo, criando novos recursos e imunidades contra os agentes mórbido-letais que pululam à sua volta, também a Natureza evolui e, durante esse processo, todas as outras espécies vivas, incluindo as patogénicas, sofrem constantemente transformações a nível genético. Deste modo, os genótipos mais favorecidos, quando encontram um terreno favorável, independentemente dos esforços de contenção ou de controlo médico-científico, podem determinar autênticas razias, parecendo reflectir, em alguns casos, uma acção aparentemente reguladoro-demográfica. Ter-se-á, pois, de admitir que os recursos terapêuticos de ponta surgidos entre os finais do século XX e o século XXI, pura e simplesmente, tem sido e continuarão a ser ultrapassados por estes agentes patogénicos, perfeitamente adaptados e sempre situados, podemos dizê-lo, um passo à frente da medicina científica.
Nesta visão algo sombria, mas real, do Mundo, em que a redistribuição de recursos não funciona e em que perecem, diariamente, milhares de pessoas (directa ou indirectamente devido à fome e à miséria), enquanto não surgir uma nova geração de homens-máquina, resistentes a tudo e capazes de substituir o homo sapiens em toda a sua dimensão vivencial, os microrganismos responsáveis por surtos epidémicos ou pandémicos irão continuar a exercer a sua acção mórbida e letal.
Teoricamente, as políticas de saúde desenvolvidas por todos os Estados do século XXI, a par dos esforços desenvolvidos por múltiplas organizações sanitárias espalhadas e activas em todos os continentes, deveriam ser mais do que suficientes para controlar, prevenir e minorar quaisquer riscos epidémicos, poupando assim as populações aos dramas e ao temor que, outrora, pesavam no quotidiano social. [Mas as certezas e previsões no domínio da microbiologia e da parasitologia, apesar dos grandes avanços científicos, nunca virão a ser possíveis de estabelecer com rigor absoluto. Futurologia, neste domínio, como noutros, é ainda matéria hermética e intransponível para a ciência. Todavia, ponderar sobre a enorme possibilidade de expansão de uma doença tremendamente infecciosa, como o ÉBOLA, perante as miseráveis condições sociais e higiénico-sanitárias dos povos onde esta e outras patologias infecciosas são, desde sempre, constantes flagelos, não é um exercício intelectual tão transcendental. Adivinha-se, a qualquer momento. Este último surto viral, em 2014, bem demonstrativo das fragilidades e incapacidades sanitárias, quer dos países onde a doença é endémica quer da própria sociedade ocidental, tecnológica e medicamente mais avançada, é a prova irrefutável dessa imprevisibilidade tão inquietante.
A sociedade Ocidental, pontualmente alvejada pelo vírus, acordou para o perigo eminente de uma epidemia incontrolável e, apoiada na OMS e nos seus próprios serviços sanitários, apressou-se a definir, não só, protocolos de controlo e prevenção epidémica, dentro e fora das suas fronteiras, como decidiu, finalmente, envidar esforços redobrados na produção e ensaio de novos antivíricos e fármacos, com algum sucesso (Favipiravir, Brincidofovir, Zmapp, TKM–Ébola). Temporariamente, o perigo parece ter sido debelado. Mas, enquanto houver miséria e iliteracia como aquelas que caracterizam grande parte das sociedades africanas, qualquer patologia infecciosa local pode virar epidémica ou pandémica.]
Neste Planeta, marcado por profundas diferenças sociais e económicas, grassarão, inevitavelmente, as velhas doenças e virão, decerto, a aparecer e a difundir-se novos microrganismos com carácter virulento. Nessa medida, o esforço de combate farmacológico e terapêutico assumido pela medicina poderá vir a ser debalde. Os recursos médicos e tecnológicos poderão, de facto, periclitar perante tais flagelos. A Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA) é disso exemplo.
Quando a ciência não parece dispor de qualquer saída medicamentosa, curativa ou profiláctica, para o combate de uma doença que se assume epidémica e mortífera, uma vez mais, a velhíssima medida da quarentena (cumprida por inteiro ou reduzida), instituída durante a Idade Média como a melhor regra preventiva contra a peste, volta a funcionar com eficácia. Isolam-se os doentes ou os suspeitos de contágio. Circunscrevem-se o espaço e os contactos dos contagiados ou que se julga estarem contaminados. Barram-se os acessos a regiões, locais ou países afectados. Fecham-se fronteiras e aeroportos.
Vigiam-se portos e todos os pontos de entrada e de saída. Obrigam-se a fundear e a permanecer ao largo as embarcações oriundas de áreas contagiadas, em regime de quarentena. O tempo define e resolve tudo. Funciona a selecção natural. Morrem os mais débeis. Convalescem e curam-se os mais resistentes com ou sem apoio médico-farmacológico. Cometem-se exageros quando, porventura, se estabelece o corte radical, ainda que temporário, de comunicações com países e comunidades onde a doença prolifera; revivem-se temores e fantasmas de sabor medieval e dissolvem-se, com frequência, os laços e o sentido da humanização e da solidariedade, quer enquanto valores individuais, quer enquanto expressão colectiva.
Por maior evolução que a ciência médica apresente e as técnicas ao seu serviço possibilitem, o ser humano ter-se-á de confrontar sempre com novos desafios, doenças e flagelos, explicáveis ou não à luz da epidemiologia do seu tempo. Nesse duelo permanente, para além dos velhos ensinamentos que a voz da experiência colectiva foi firmando e dos recursos disponíveis à satisfação das exigências de cada época, há princípios indeléveis que, hoje e sempre, são o garante da continuidade e da sobrevivência do Homem, conferindo-lhe um lugar ímpar no reino animal: tolerância, altruísmo, humanização, solidariedade e cooperação.
Só através da orientação ou definição de um estilo de vida inteligente e ecológica e de uma união eficaz de esforços e vontades, a nível intra ou extra-planetário, o «homem de amanhã» pode fazer face aos microrganismos virulentos ou a quaisquer outros agentes patogénicos, velhos ou novos, de carácter epidémico ou não.
Mas se o futuro é, em si mesmo, um enigma neste domínio, as certezas do presente não deixam margem para dúvidas e requerem toda a nossa atenção: em todo o Mundo morrem anualmente mais de 75 000 000 de pessoas, devido a doenças infecciosas. Talvez seja este o preço que a Humanidade terá sempre de pagar à Natureza, pela forma como nela se integra e dela se serve, ameaçando e destruindo, constantemente, elementos vitais à sua natural dinâmica e harmonia e pondo, assim, em causa alguns dos principais mecanismos responsáveis pelo equilíbrio ecológico global.”
(1) Coevos da grande peste negra de 1348, dois médicos hispano-árabes terão sido as primeiras vozes a discordarem das explicações místicas, pré-racionalistas, atribuídas à contagiosidade da doença. Ibn Al-Khatib, numa obra sua, "Compendium de epidemia per Collegium Facultatis Medicorum Parisiis ordinatum", considerado dos primeiros tratados descritivos da peste, põe pela primeira vez em causa a etiologia divina da mesma e avança com a possibilidade de o contágio se poder processar através do contacto com objectos pessoais do doente, ideias não só originais como heréticas, naquela época. Um outro físico, Ibn Khatimah, com uma larga experiência clínica no tratamento de empestados, conclui também que a doença é altamente contagiosa, já que, com grande probabilidade, um indivíduo em contacto com um pestoso acaba por contrair as mesmas queixas: «se o doente expectorava sangue, o contagiado fazia o mesmo (peste pulmonar); se o pestoso era bubónico, o segundo também o seria» (ROQUE, Mário da Costa - As Pestes Medievais Europeias e o «Regimento Proveitoso contra a Pestenença». Lisboa/Paris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português; 1979. p. 59-60).
(2) What killed the Aztecs? (http://www.solopassion.com/node/1304).
João Frada
Professor Universitário (Ph.D.) da FML
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