O novo Código de Ética que está a ser preparado pelo Ministério da Saúde prevê que todos os funcionários que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) tenham que começar a encaminhar qualquer presente que recebam para a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde. As ofertas serão, posteriormente, doadas.
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Agora a ideia é ir mais longe e vedar a possibilidade de qualquer funcionário ficar com um presente, “independentemente do vínculo ou posição hierárquica” que ocupe. “Os colaboradores não podem solicitar ou aceitar, direta ou indiretamente, dádivas e gratificações, em virtude do exercício das suas funções, nos termos legalmente previstos”, lê-se no projeto, que acrescenta que “todas as ofertas de bens recebidas em virtude das funções desempenhadas devem ser registadas e entregues à Secretaria-Geral do Ministério da Saúde”.
Velar pela moralidade nos mais diversos setores da vida nacional e, começando, ou continuando, porque não, pela área da Saúde, esta é uma medida a aplaudir, se não fosse tão discricionária e setorial e, sob alguns aspetos, atrevemo-nos a classificar, tão ridícula e insensata. É que cai tudo no mesmo saco: desde a esferográfica, ao bloco de papel, ao cheque para compras de equipamentos, à viagem de férias, etc.
Ao evitar favorecimentos, bem como quaisquer outros processos que envolvam conluios, compromissos ou atos potencialmente fraudulentos, e ao limitar corrupção ou quaisquer outros atos ético-deontologicamente reprováveis, socorrendo-se de legislação e mecanismos policiais e judiciais capazes de os prevenir, o Senhor Ministro da Saúde pretende pôr cobro a mais alguns vícios e ilicitudes instalados na Saúde em Portugal, no fundo, aplicando mais uns “remédios santos” numa área que, na sua opinião, vem de há muito a sofrer de algumas mazelas crónicas, não destoando, de algum modo, do resto do país. A imoralidade abunda, ainda que muitos a não queiram ver e, muito menos, pretendam pôr-lhe termo.
Visando preservar a moralidade e a ética, tal procedimento ministerial é lícito, lógico e inteligente e é um exemplo a seguir noutras áreas da Governação. Mas se a medida é, em si mesma, positiva e útil, visando assegurar transparência e honestidade na praxis médico-assistencial, corre-se o risco de, em alguns casos, tocar as raias do exagero e, voltamos a dizê-lo, do ridículo.
O médico observa e trata os seus doentes e, nos tempos que vão correndo, na alienação, na pressa e pressão com que, constantemente, lhe espartilham o tempo disponível para uma razoável anamnese e para um criterioso exame clínico, no cumprimento de objetivos que nem sempre se identificam com um exercício assistencial humanizado, faz das tripas coração e dá de si muito mais do que o que se espera, indo muito para além do mero ato técnico-sanitário. O paciente sabe reconhecer esses valores, esses afetos, e resolve ter uma gentileza, oferecendo por cortesia ao “senhor doutor” o que para si vale ouro e se for recusado é uma ofensa imperdoável: uma galinha, um pato, um peru, em alguns casos, um caixote de batatas ou de laranjas, um bolo de mel, uma garrafa de vinho tinto ou de aguardente da sua lavra…
Mas, pelos vistos, o senhor Ministro da Saúde, cifrónica e friamente apostado em converter atos médicos em simples relações económicas, edm prestações de serviços automatizados e céleres, não parece ter dado por estes aspetos excecionais. Ou deu?
O que nos perguntamos, ainda, é se, para além destas prendas de cariz caseiro, a esferográfica, o bloco de papel, a caixa de Viagra ou Cialis, os preservativos ou o livro com interesse técnico-científico ou literário, oferecidos pelo laboratório, devam ser também enquadrados no mesmo escalão dos cheques-oferta para viagens de férias, compra de equipamento ou, simplesmente, para compensação pecuniária por colaboração de prescrição ativa de medicamentos, fraudulenta ou não? E todos eles são puníveis por lei? E a triagem destas “prendas” será então feita a nível central, sob autoridade do Ministério da Saúde, e, preferencialmente, deverão ser doadas a instituições de beneficência? Supomos que nestas doações se incluirão também, a par dos chouriços e dos bolos caseiros, as embalagens da Viagra, de Cialis ou os preservativos... Será assim?
A ideia geral do senhor Ministro Paulo Macedo, se forem consideradas algumas exceções, retirando do pacote de prendas alguns artigos, até é capaz de ser um ótima estratégia em termos de moralização da sociedade portuguesa e, em particular, da Saúde. Devia, era, também estender-se, e já, à classe política, toda ela, supomos, bem consciente do apreço que a maior parte do país lhe devota, tendo em conta a percentagem de abstenção nas últimas eleições. E como alterar esse status quo, podemos perguntar? Criando as condições fundamentais para prevenir o tráfico de influências e de favores, para reduzir a promiscuidade entre o setor público e o privado, limitando o risco de fraude e de recebimento de compensações pecuniárias ou de qualquer outro tipo, durante ou após o exercício de funções na vida pública, através de uma legislação que obrigue os deputados a cumprirem os seus mandatos parlamentares em regime obrigatório de exclusividade e a sujeitarem-se, depois desse exercício, a um período de nojo de cinco anos. Simples, esta medida de saneamento na vida política. Tão simples como acabar com as prendas oferecidas ao pessoal da Saúde.
Mas, curiosamente, a maioria governativa, PSD-CDS, apoiada pelo PS, chumbou no passado mês de abril os diplomas propostos pelo BE e PCP que visavam, exatamente, moralizar definitivamente parte da sociedade portuguesa: os nossos parlamentares. Começando por cima, pela classe política, a qual deveria ser a primeira a dar o exemplo, estas medidas serviriam seguramente para pôr termo às dúvidas que persistem nas mentes de tantos portugueses, crentes de que os seus políticos, em particular, os deputados da nação são suscetíveis a múltiplas “prendas” traduzidas em favorecimentos e em lucros ou compensações pelos negócios entre o Estado, que representam, e as empresas a que estão, estiveram ou virão a estar ligados. O senhor Ministro da Saúde, apostaríamos, tão preocupado com estas coisas da moral na sua área, deve ter ficado bem frustrado por ver os seus colegas de Partido darem um exemplo tão péssimo como este, do chumbo de tais diplomas tão moralizantes e construtivos, ainda que propostos por Partidos de Esquerda, identificados por linhas ideológico-políticas bem longe das suas convicções.
Apesar desta triste realidade, alimentada pelo seu próprio Partido, o senhor Ministro Paulo Macedo, qual paladino da ética, da transparência e da moral da praxis médico-assistencial, entende que as prendas dadas por particulares ou pela indústria farmacêutica a funcionários do Serviço Nacional de Saúde devam ser objeto de apreciação prévia do seu Ministério.
Pena é que haja dois pesos e duas medidas… sina a que, em termos de política, já estamos de certo modo habituados.
É caso para dizer que, se uns podem ser prendados e outros não, então é motivo para lembrarmos a velha máxima: "Ou há moralidade ou comem todos".
João Frada
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