sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

GARCIA DE ORTA, UM PIONEIRO DO EXPERIMENTALISMO CIENTÍFICO


Garcia de Orta, médico e botânico: uma das maiores figuras da História da Medicina Portuguesa da Época Moderna (1415-1789)


Garcia de Orta, um pioneiro do Experimentalismo Científico

 

Índice

 

Introdução

I          - Alvores do Experimentalismo Europeu

II         - Portugal e Experimentalismo

III       - Estudo Biográfico de Orta

IV       - Garcia de Orta e a Cultura do seu Tempo

V         - Colóquios dos Simples e o Método Experimental

Conclusão

Notas e referências bibliográficas

Bibliografia

* * *

Introdução

«Coisa natural é ao homem o querer saber»

                                                                                    Aristóteles

Muito antes do Renascimento, já o homem se interrogava acerca de si próprio e do mundo que o rodeava, procurando solucionar as suas dúvidas e chegar à “verdade” das coisas pela experiência. Até aí, o pensamento arreigado ao pragmatismo do espírito escolástico, não sentia necessidade do recurso experimental.

A explicação dos fenómenos, embora tendesse à racionalidade, não passava de uma descrição superficial dos mesmos. Captados pelos sentidos, fosse qual fosse o coeficiente de subjetividade do observador ou das circunstâncias de observação, assim se tomavam, tantas vezes, como verdades completas e irrefutáveis, aspetos parciais e pouco representativos para a definição do real.

A explicação do Mundo, do Homem e das coisas, desde que se apresentasse duma forma lógica, ainda que distante da verdadeira realidade, seria tanto mais universalmente aceite quanto maior a importância do seu responsável; bastava apenas ser ditada por uma reconhecida autoridade (indivíduo, escola ou instituição), no campo do saber ou da cultura.

Erros absurdos pregavam-se como verdades irrefutáveis e ideias e conceitos, ainda que meras opiniões inconsistentes, podiam gerar dogmas que ninguém ousava contestar. O que o raciocínio não explicava, pela natural limitação cultural e tecnológica, fazia parte do domínio transcendental e metafísico, ininteligível pela razão. Cabia aqui, à Fé e à Religião, o papel de arbitrar entre os homens os limites das certezas e das dúvidas.

O sentido místico atribuído aos fenómenos penetrava os espíritos mais evoluídos e, até aos finais da Idade Média, a Escolástica, alicerçada na Teologia entravou, consideravelmente, a afirmação desta neo-corrente cognitiva indesligável da experiência, o Experimentalismo, um método inovador para a conquista do saber.

Num período em que as instituições laicas e religiosas ditavam as normas do pensamento e os sistemas de valores, esta ousadia, só de uma forma pontual e sem grande significado, teve os seus reflexos nas estruturas culturais e tecnológicas do tempo. A Idade Média galgava os seus últimos séculos e uma nova fonte de sabedoria, forjada por alguns homens mais iluminados (que, embora na penumbra e na incompreensão, souberam ultrapassar os padrões plenos de arcaísmo e estagnação próprios da época) acabaria por emergir na Europa Ociental, como um primeiro reflexo de uma maneira diferente de contemplar o mundo e as coisas.

Adiantados alguns séculos em relação a uma nova forma de pesquisar a “verdade” e de atingir realidades e certezas, vários personagens  destacam-se em diversos países do Velho Continente. A necessidade de entender a “verdade” não repousava já no estrito domínio da Dialética, da Lógica, da Teologia, mas na penetração das coisas, da Natureza e do Homem, através da experiência e da reflexão apoiada nos sentidos.

De raízes bem antigas, como vimos, o Experimentalismo encontra no séc. XVI, as condições necessárias ao seu desenvolvimento e afirmação, nos demais países europeus (1).

Em Portugal, esta revolução do pensamento surgiria também mas, sem provocar grandes mudanças nas estruturas mentais da intelectualidade da época (2). Todavia, no âmbito da Náutica, desenvolvida pelo movimento expansionista dos Descobrimentos, esta nova faceta de encarar o Mundo, o Experimentalismo, veio a ter uma dimensão bem particular.

Talvez não se deva ainda designar de ciência, pois, para além da observação e experiência, carece ainda de outras componentes, a racionalização e a generalização. No entanto, encontramo-nos, sem dúvida, numa nova era, numa primeira etapa do pensamento científico, a que alguns especialistas chamam de Experiencialismo.

Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes, D. João de Castro e Garcia de Orta, foram os grandes representantes desta nova atitude científico-cultural.

Orta enfermou, como seria óbvio, das limitações características do seu tempo. A sua obra, os Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, não sendo um perfeito exemplar de experimentalismo científico é, contudo, uma das primeiras tentativas sérias de fazer ciência experimental. O valor deste trabalho foi quase imediatamente reconhecido no estrangeiro, após a sua 1ª edição goesa.

Pouco conhecidos em Portugal, após a sua publicação, os “Colóquios”, depois da morte de Orta, vieram a sofrer repúdio da Inquisição que os considerou heréticos, atirando-os às chamas.

As traduções estrangeiras, sobretudo a partir de Charles L´Écluse, o seu principal difusor, puderam garantir à posteridade a informação inestimável contida nesta obra.

Muito rara, a edição goesa de 10 de Março de 1563, veio a ser reeditada duas vezes no século XIX pela Academia das Ciências de Lisboa.

Pudemos ter uma ideia perfeita do seu texto através da leitura da obra publicada em dois volumes, em 1891-92.

Para além de outras fontes consultadas sobre Orta, os “Colóquios”, publicação de 1891-92 dirigida e anotada pelo Conde de Ficalho (um dos seus maiores biógrafos), constituíram o elemento fundamental para a realização dos nossos objetivos.

Sem exagerarmos a importância de Orta no campo da «Ciência Experimental», apontando até as lacunas e falhas existentes no seu método, que nos impedem de o considerarmos completa e incondicionalmente identificado com a «via científica», queremos ao longo deste estudo provar que ele foi, a seu modo, um precursor, um pioneiro do Experimentalismo em Portugal.

Os Colóquios transmitem-nos um perfil psicológico completamente desarreigado da cristalização imposta pela Teologia e pela Escolástica. Orta conhecia a fundo os autores clássicos e modernos do seu tempo, mas não se deixou influenciar muito pelos cânones e mitos defendidos por muitos deles.

Outro aspeto nos impressiona após várias leituras dos “Colóquios”; o nosso ilustre naturalista cita múltiplas passagens das obras clássicas mais difundidas na sua época, que lera ou conhecera enquanto estudante e ou professor universitário em Lisboa, as quais servem de base às suas críticas. Admitindo que muitas delas tenham sido fruto de inúmeras leituras, obviamente bem retidas numa memória prodigiosa e forte, a maior parte são resultado evidente do uso imediato da obra, forçosamente ao seu alcance.

Custa-nos a perceber como terá Orta resolvido o difícil e oneroso problema de dispor de biblioteca privada naquela época em que os livros eram raros e difíceis de adquirir, ainda mais, tão afastado da Europa como estava.

Inserindo Orta no panorama cultural geral europeu e português da sua época, iremos orientar este estudo em torno de dois polos de interesse essenciais: o Experimentalismo, pressentido nos “Colóquios”, patente em excelentes passagens a que iremos dar corpo e organização no último capítulo do trabalho; e a utensilagem documental e bibliográfica de Orta, matéria imprescindível à elaboração da sua obra.

Por acharmos que a leitura dos vários tópicos, selecionados como pontos de análise, se reveste de especial importância para o conhecimento da bagagem intelectual de Orta, procuraremos estabelecer, definitivamente, as nossas ilações na Conclusão deste trabalho.

I - Alvores do Experimentalismo Europeu

Surge nos finais do séc. XIII um sistema filosófico, o Nominalismo. Perante esta nova corrente, a Escolástica e o seu último representante, Duns Escoto, acabaram por perder progressivamente a grande importância que até aí se lhes reconhecia. Aquela expressão filosófica, talvez nascida do seio da Escolástica, opondo-se-lhe, contudo, frontalmente, teve em Guilherme de Ockam (discípulo de Duns Escoto) o seu maior representante.

Na perspetiva nominalista, «todo o conhecimento tem a sua fonte na experiência» (3).

Profundamente influenciadas e envolvidas neste ambiente teológico e filosófico, algumas figuras medievais se haveriam de distinguir no domínio intelectual e tecnológico, enriquecendo um pouco mais a história cultural do Homem. Abelardo de Bath (inícios do séc. XII), descobriu algumas particularidades sobre funções do cérebro humano, processos de respiração e digestão); o Imperador Frederico II (2ª metade do séc. XIII), experimentador infatigável, legalizou a prática de dissecação anatómica, criou um sistema de exames e de licenças para médicos e veio a fundar a Universidade de Nápoles, talvez uma das melhores escolas médicas desse tempo.

Nesta linha do método experimental surge, indiscutivelmente, um dos mais brilhantes e decerto o mais conhecido cientista medieval, Roger Bacon (1210 ou 1214 – 1292 ou 1294). Segundo Aldo Mieli, as três prerrogativas (ou dignitates) da ciência experimental eram, no conceito de Bacon, as seguintes:

1º – Comparação das conclusões a que chegaram outros métodos escolásticos.

2º – Obtenção das conclusões que ocupam lugar nas ciências já existentes e que, todavia, são completamente novas.

3º – Conquista das partes da Ciência que são totalmente novas.

Dotado de um espírito inventivo invulgar, diremos mesmo ficcionista, realizou trabalhos práticos de grande valor. Estudou lentes de aumento e segundo alguns especialistas, terá mesmo inventado o microscópio, descoberta que só muito mais tarde, com Levwenhoeck, no séc. XVII, se passou a aceitar universalmente (4).

Figura de uma personalidade científica bem patente, desligado dos cristalizados dogmas e conceitos do seu tempo, salvaguardando um certo avicenismo que o influenciava, Roger Bacon tinha ideias próprias, realmente originais. Projetando-se muito além da época em que viveu, terá sido o menos medieval entre os físicos medievais (5). Este seu aforismo, pleno de atualidade, assim no-lo demonstra:

«Não te detenhas em raciocínios efémeros. Observa primeiro e experimenta depois.»

Nascera o Experimentalismo. Estavam assim lançadas as bases para o progresso científico da Renascença.

Muitos outros filósofos se podem considerar inseridos nesta linha de pensamento; Santo Alberto Magno, Pedro Hispano, Santa Hildegarda, João de Santa Amanda ou Grosseteste, todos eles deram, de certo modo, alguns passos audaciosos na «via experimenti».

II – Portugal e o Experimentalismo

A sabedoria unânime dos antigos dizia que das cinco partes do mundo, três são inabitáveis e que as duas extremas são frígidas, por virtude do frio, e a média é tórrida, por virtude do calor. Mas a experiência de comerciantes e navegadores iletrados refutou agora esta sabedoria.»

(Pierre de La Ramée, apud Maria Tereza Fraga, Humanismo e Experimentalismo na Cultura do séc. XVI, p. 39)

Dogmas cristalizados há séculos, sabedoria antiga que ninguém ousava pôr em dúvida, acabariam por ser corrigidos e contrariados por comerciantes e navegadores nem sempre de formação clássica superior ou erudita. Tinham, no entanto, a seu favor um instrumento importante e eficiente: um saber empírico, claro e inconfundível, fruto da sua própria experiência assente nas tentativas e nos erros.

Mergulhados na linha tradicional da Escolástica e indissociados dos valores impostos pela Igreja, éramos, aparentemente, nos finais do séc. XIV, como a maior parte dos países europeus ocidentais, a perfeita imagem do modelo de civilização medieval.

Bem antes da Itália, da França, da Alemanha e dos Países Baixos, Portugal, mercê de várias circunstâncias muito particulares de ordem geopolítica, económica e certamente também, étnico-cultural, inicia a grande empresa dos Descobrimentos.

O Experimentalismo português assumiu um cariz completamente diferente do europeu de Oxford, de Pádua e das outras cidades italianas.

Embora na Universidade portuguesa, tal como no estrangeiro, o saber livresco de carácter dedutivo, com muito pouco de científico (no sentido moderno da palavra)(6) fosse, de facto, a tónica do ensino ministrado aos estudantes, a génese de uma nova via de acesso ao conhecimento – através do método experimental e indutivo –, havia já despontado entre nós.

Desde o reinado de D. Dinis que a «ciência» náutica em Portugal, apoiada na prática da Astronomia, contributo de judeus, mouros e italianos (genoveses, etc.), assume uma importância crescente na vida da Nação.

Com o Infante D. Henrique, a Escola Náutica de Sagres vem a representar e a congregar toda esta tradição para a qual nós estávamos virados.

Nesta escola prática, os conhecimentos de Cartografia e Náutica eram produtos de uma aprendizagem sem quaisquer bases de preparação superior teórica astronómica ou matemática, e a sabedoria ali transmitida era apenas resultante da aquisição empírica, da persistência, do engenho e da reflexão circunstancial dos navegadores.

Esta sabedoria revolucionária nos conceitos e nas técnicas, engrandecida por constantes acréscimos fundamentados no erro e na experiência, sujeita à reflexão dos teóricos menos ortodoxos, assumiria, pouco a pouco, uma feição eminentemente científica, impondo uma clara rutura na linha de pensamento teológico-escolástica, da qual resultaria uma nova era cultural.

O Experimentalismo joeirava, a cada passo, a ciência dos antigos e, expunha os portugueses a permanentes confrontos entre o clássico dogmatismo medievo e da realidade apreendida e verificada pelos sentidos.

Ptolomeu (séc. II) e outros geógrafos antigos, citados por Duarte Pacheco Pereira na sua obra Esmeraldo de Situ Orbis, foram, realmente, os alicerces sobre os quais se estabeleceram as primeiras conceções geográficas, orientadoras dos Descobrimentos.

Os sábios medievais, de um modo geral, pouco haviam modificado ou acrescentado a tais conhecimentos.

Os Descobrimentos lançariam o pensamento português e europeu noutros rumos, em novas dimensões e perspetivas, de que resultariam as bases de uma verdadeira ciência geográfica, despojada de fantasias e de mitos, depurada de falsas ideias e conceitos anquilosados.

«A experiência, a experiência empírica, a experiência do senso comum, a experiência sensível, é o novo critério de Verdade, em detrimento das autoridades…»(7).

Este sentido da experiência, patente na obra de Pacheco Pereira, encontramo-lo também em João de Lisboa (1514), Sá de Miranda (1515), Gaspar Barreiros (1546) e D. João de Castro (entre 1538 e 1548) nos seus Roteiro de Lisboa  e  Tratado da Esfera (8). Estas obras são documentos importantes para a história do pensamento moderno, que bem podemos considerar elementos fundamentais para a compreensão da chamada pré-história da experiência científica, da experimentação.

Vários textos de autores estrangeiros, mas também portugueses, deixam-nos entrever fórmulas bem identificativas de uma nova maneira de pretender atingir e conhecer a real essência do mundo e das coisas, a verdade «científica»:

«… ficamos sabendo que a experiência nos ensina.»(9) «… a experiência mestra de todas as coisas.»(10) «… a experiência que é a mãe das coisas, ou a experiência que é a mãe de todas as coisas.»(11)

 

Muitos outros exemplos poderíamos apontar como significativos de uma nova atitude subjacente à reflexão e à pesquisa da verdade.

Desponta a mentalidade moderna entre os portugueses e, neste clima de racionalidade positivista e indutiva, os mais sensíveis e os mais dotados seriam indubitavelmente influenciados e influenciariam eles próprios.

III – Estudo Biográfico de Orta

Divergem as opiniões dos vários autores interessados no estudo biográfico de Garcia de Orta, quanto ao local e data do seu nascimento. Mas se a data em que foi nado apresenta difícil solução para a maior parte dos investigadores, o mesmo não acontece quanto à sua origem. Diogo Barbosa Machado (na sua Bibliotheca Lusitana), A. Thomaz Pires, C.N. Tavares, Conde de Ficalho, Santo Adrião do Sever e D. Joaquim Olmedilla Y Puij, são absolutamente concordantes quanto à naturalidade de Orta, e apontam Elvas como tendo sido o berço do ilustre «cientista» (12).

Garcia d'Orta, «depois de estar instruído com os primeiros rudimentos passou a Castela» (13).

Apesar dos esforços, os seus estudiosos também não conseguiram, até agora, definir completamente a condição socioeconómica dos seus pais ou familiares mais diretos.

Barbosa Machado aponta-o como doméstico da nobre família de Martim Afonso de Sousa, fidalgo com o qual viria a embarcar rumo à Índia, em 1534. Segundo este biógrafo, entre os servidores de Lopo de Sousa, senhor de Vila Viçosa, pai de Martim Afonso, ter-se-ão contado alguns dos Orta de Elvas. Somos levados a admitir o facto, pela afinidade e proteção indiscutíveis que lhe viriam a ser concedidas por este futuro governador da Índia. Simples conjeturas de Barbosa Machado, já que não dispomos, até ao momento, de qualquer prova documental a apoiar tais suposições.

Mas, o certo é que, não devia ser muito modesta a condição económica dos pais de Orta, na medida em que estes lhe vieram a propiciar uma formação universitária no estrangeiro.

Descendente de pais judeus espanhóis, segundo C.N. Tavares e José Pedro Machado, os reflexos da sua origem étnica e da sua formação religiosa, marcadamente judaica para a maior parte dos seus biógrafos (ainda que outros o apontam menos convicto, de feição consideravelmente cristianizada), vieram a pesar na sua vida e para além da sua morte.

A Inquisição, surgida em Espanha em 1481, adivinhando-se em Portugal desde 1496 (com as primeiras medidas anti-semitas e anti-mouras no reinado de D. Manuel) e definitivamente aqui instituída em 1536 com D. João III, terá tido grande influência nas atitudes de Orta.

Permanecendo em Espanha cerca de 10 anos, Garcia de Orta, após ter frequentado as Universidades de Salamanca e Alcalá de Henares, onde estudou Gramática, Artes, Súmulas (14), Filosofia Natural e Medicina, terá regressado a Portugal entre 1525-26, doutorado (15) ou já licenciado em Medicina, não se sabe ao certo. Em Alcalá deve ter sido orientado no domínio da Botânica por António de Lebrija que lhe terá dado uma formação profunda de herborização em pleno campo.

Obtidas as licenças em Lisboa, para exercícios de medicina e «andar em mula», passados por D. João III (perante o Físico-Mor), instala-se, na Primavera de 1526, em Castelo de Vide e por aqui se haveria de demorar vários anos, levando uma monótona vida de «João Semana», cavalgando na serra e na charneca que vão do Crato a Alpalhão e a Niza, relendo os seus livros ou passando as tardes na botica.

Pretendendo enveredar pela carreira do Ensino Superior, após várias tentativas falhadas, veio, finalmente, em 1530, a reger a cadeira de Filosofia Natural (Física Aristotélica) e de 1531 a 1532, interinamente, Filosofia Moral na Universidade de Lisboa (16).

Dotado de «fino ceticismo, temperamento de bom humor e a crítica pachorrenta e graciosa, mas nem por isso menos mordaz, o que não é raro encontrar entre os nossos provincianos do sul» (17), revelando desde muito cedo um insatisfeito espírito científico, abandonou a vida calma e rotineira da província, e procurou o ambiente citadino de Lisboa. Era aqui que a intelectualidade fervilhava na Universidade e fora dela, e os novos conceitos e doutrinas, criações da época, irrompiam e faziam eco nos espíritos mais avançados.

Inseguro, pela dimensão que a Inquisição vinha a tomar em Portugal e, indiscutivelmente, movido pela sua curiosidade científica, rumou ao Oriente.

Viu Goa em Setembro de 1534 e acompanhou Martim Afonso de Sousa, como físico, nas suas campanhas de mar e terra. Físico-Mor de alguns governadores que se seguiram a Afonso de Sousa no Oriente, foi médico de príncipes e sultões indianos, entre os quais veio a granjear uma fama considerável.

Mercador de drogas ou coisas de natureza médica, joias e pedras preciosas (18), nesta atividade, estende a sua presença a múltiplos locais onde vem a conhecer nobres, intelectuais e médicos hindus e muçulmanos. Nestes contactos, sempre sequioso de saber, atento a tudo, enriqueceu enormemente a sua bagagem cultural e muniu--se das bases fundamentais à realização dos seus “Colóquios”.

Era 1541, casa-se no seio de uma família de cristãos-novos mas o seu casamento revelar-se-ia, bem depressa, fracassado.

A sua obra, Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, publicada em 1ª edição indo-portuguesa em Goa, no ano de 1563 (19). Embora não tivesse grande impacto no meio cultural português da época, de certo modo espartilhado e anquilosado pela Escolástica e pela Igreja, ainda dominantes na Península (avesso à Reforma e sem grandes espírito de receção ao rejuvenescimento humanista europeu), teve a projeção merecida no estrangeiro.

Os Colóquios, reproduzidos em versões latinas, francesas, etc., encontram, sem dúvida, no eminente botânico belga Charles L'Écluse (1526-1604), a partir de 1567, o seu maior divulgador no mundo ocidental. Já falecido (em data incerta no ano de 1568), quando muitos dos seus familiares caíam nas malhas da Inquisição (20), "é denunciado" ao Stº Ofício em 1569, por um seu cunhado, íntimo conhecedor das suas tendências religiosas. Assim, perante a consternação de todos, e, foram muitos quantos o admiraram e respeitaram em vida, os inquisidores, em Dezembro de 1580, desenterraram os seus restos mortais, queimando o que restava deste homem (21), sem dúvida, uma das figuras mais notáveis da medicina portuguesa renascentista.

IV – Garcia de Orta e a Cultura do seu Tempo

A exemplo do que acontecia nas Universidades Europeias, o ensino de Medicina em Salamanca baseava-se nas obras de Hipócrates, ainda que se considerassem outras correntes e se estudassem outros autores antigos e mesmo mais modernos. Galeno era, naturalmente, uma figura obrigatória. Contudo, como este se filiava e continuava na escola hipocrática, era realmente Hipócrates quem dominava o pensamento médico da época. Com a morte daquele grande vulto o pensamento hipocrático-galénico entre em decadência, lançando, no entanto, alguns clarões que ainda influenciaram a escola de Salerno, durante a Idade Média.

Levada por médicos gregos que se fixaram na Ásia Menor, a ciência médica, moribunda no Ocidente, alastra no Oriente, cultivada, enriquecida e difundida por judeus e muçulmanos, em especial por estes últimos.

Califas ilustres e generosos acolheram e abrigaram nas suas cortes os homens de ciência; eles encarregavam-se da tarefa grandiosa da promoção do desenvolvimento cultural, através de centros de ciência em Damasco, Bagdad, Córdova, etc.

Entre os grandes nomes da ciência oriental, destaca-se o de Avicena, cuja obra notável teve influência tanto no Ocidente como no Oriente. O seu “Canon” é uma compilação da maioria das doutrinas de então, formando uma obra completa e metódica, inspirada no espírito e na obra de Galeno. Até 1510-1520, as ciências médicas tinham por base os estudos hipocráticos.

A Botânica era simples matéria médica vegetal, de importância relativa em Medicina. Nesta perspetiva, a obra de botânica com maior conteúdo científico, que se deve a Teofrasto, foi quase desconhecida, embora se tenham feito algumas edições latinas das suas obras, História Plantarum  e  Causis Plantarum.

Por outro lado, a obra de Dioscórides, “Matéria Médica”, teve uma enorme expansão na Idade Média entre muçulmanos e cristãos. Importantes noções de Botânica, dominantes no tempo em que Garcia de Orta ingressou nos estudos universitários, marcaram, de facto, uma época na história do pensamento médico.

Pouco antes da chegada de Orta a Salamanca, verifica-se uma importante modificação nos estudos universitários. Com a tomada de Constantinopla em 1453, muitos eruditos se refugiaram no Ocidente. Importantes figuras de Escol, no Império Bizantino, trariam consigo o que de melhor haviam conservado da cultura grega, o culto das Ciências e das Letras.

Da vinda destes sábios, imediatamente relacionados com as escolas e universidades peninsulares, resultou um melhor conhecimento e aperfeiçoamento da língua grega no Ocidente. Nesse profícuo contacto, corrigiam-se os inúmeros erros e deturpações resultantes das múltiplas traduções e complicações, efetuadas na sua maior parte por árabes. Nesta série enorme de transmissores, verificar-se-iam discrepâncias, senão mesmo autênticas oposições relativamente aos fundamentos mais originais. Assim, Hipócrates surge deturpado, Galeno arabizado e Aristóteles pleno de fantasias.

Confrontados com a verdade sobre as doutrinas e língua gregas, indiscutivelmente testemunhadas por tais sumidades, a cultura arábica ficou terrivelmente desacreditada no seio da Universidade Espanhola. Avicena e outros autores árabes foram banidos (22).

Desconhecendo-se em qual das Universidades, Salamanca ou Alcalá, se graduou, como já anteriormente afirmámos, Orta terá, no entanto, contactado de perto com tais inovações no domínio da cultura.

Entretanto, Conde de Ficalho pretende situar a graduação de Orta naquela última universidade, inferindo as suas suposições a partir do seguinte dado: Orta cita múltiplas vezes nos Colóquios um indivíduo, de nome Tordelaguna, que havia sido boticário, que ouvia também medicina, o qual conhecera em Alcalá (23).

Em Alcalá de Henares, Orta recebeu, certamente, uma sólida formação clássica, cursando Gramática, Artes e Medicina, lendo e aprofundando os seus conhecimentos sobre Dioscórides e Plínio, de quem se faziam estudos profundos nessa altura. Pela primeira vez, na Península Ibérica, estabeleceu-se aqui uma cátedra especial de Botânica, de que foi regente António Lebrija ou Nebrija (já atrás citado). Dez anos em Espanha, regressa a Portugal em 1525-26 e, decerto, devido à sua natureza insatisfeita e inquieta, carente de erudição e intelectualidade, deixa a província e vem integrar--se na docência universitária de Lisboa.

Entre as obras clássicas de autores portugueses, breviários do seu tempo, que lhe seriam, na sua maior parte, familiares, destacamos os trabalhos de Pedro Hispano ou Pedro Julião (24), médico ilustre do reinado de D. Afonso III. Formado em Astrologia e Medicina pela Escola de Paris, Pedro Hispano escreveu as, que vieram a ter uma difusão enorme em toda a Europa. Este Sumulae Logicales importante tratado de Filosofia, seguido em Portugal pelos estudiosos e eruditos seus contemporâneos, constituiu uma obra de leitura obrigatória, durante vários séculos, na Universidade portuguesa. Além desta última obra de carácter filosófico, uma outra, essencialmente versando a Medicina , Thesaurus Pauperum, se lhe ficou devendo.

Garcia de Orta, só dificilmente não terá conhecido e lido as obras deste notável personagem.

De não menos importância, as suas relações com homens distintos e cultos do seu tempo: António de Ataíde, Conde de Castanheira, primo do seu principal protetor, Martim Afonso de Sousa, muito influente na corte de D. João III, Pedro Margalho, seu amigo pessoal, lente prima de Teologia e vice-reitor da Universidade, também provavelmente Pedro Nunes, de quem teria sido amigo e contemporâneo enquanto docente universitário, terão sido marcas fundamentais para a definição do seu perfil psicológico e cultural.

No séc. XVI sentia-se, também já em Portugal, o ressuscitar da Antiguidade Clássica no Humanismo florescente, nas notas renascentistas de feição italiana; mas, para além disso, vivia-se algo de diferente e grandioso: a euforia do Império das Índias.

Os «fumos da Índia», na opinião de Afonso de Albuquerque, perturbavam os espíritos e a sua tremenda influência projetava-se na vida comum, nas ideias, nos costumes, na literatura na história, nos demais ramos da ciência e da cultura desse tempo.

Garcia de Orta, envolvido por este ambiente cultural e, particularmente privilegiado por importantes influxos ibéricos e de além Pirinéus (nos seus contactos com a Espanha), aberto às novas vias de perscrutar o Mundo, viria a tornar-se um dos nossos maiores vultos no campo do experimentalismo, reconhecidamente, um dos melhores naturalistas ao serviço da medicina no Oriente.

Apaixonado pela Natureza que aprendera a conhecer de perto, sedento de saber e experimentar, asfixiado pela regência de matérias rigidamente indesligáveis da Lógica, decerto incompatível com a sua mente já permeável à «dúvida metódica», temendo a Inquisição, talvez ambicionando fazer fortuna, larga a cátedra e, em Março de 1534, sai de Portugal rumo à Índia, de onde nunca mais regressa.

Os seus «Colóquios dos Simples», um verdadeiro tratado de Farmacologia (podemos mesmo considerá-los uma autêntica Farmacologia de produtos orientais) são, indiscutivelmente, o retrato fiel da sua bagagem cultural e científica.

Após de uma cuidadosa análise da obra, apercebemo-nos não só da sua considerável sabedoria, fruto de uma capacidade de observação e da experiência pessoais, mas também da profunda formação teórica que possuía, alicerçada no conhecimento alargado dos naturalistas e médicos seus contemporâneos e no de mestres de cultura arábica e greco-latina, nomeadamente Teofrasto, Celso, Plínio e Dioscórides.

A lista de autores citados nos Colóquios, elaborada por Conde de Ficalho, é muito mais extensa (25). Informação valiosa, já que nela constam, embora de uma forma breve, os aspetos biográficos mais importantes de cada uma dessas figuras apontadas por Orta no seu estudo, os Colóquios permitem-nos, para além disso, avaliar a utensilagem cultural e, sobretudo, bibliográfica do grande naturalista.

 

V – “Colóquios dos Simples” e o Método Experimentalista

 

O Homem não perde o seu tempo ao perscrutar a Natureza, tentando desvendar    os seus mistérios, antes porém se enriquece com «reais descobertas, isto é, novos recursos» (Francis Bacon, Novum Organum, I, 81(26)).

Orta, bem antes de Bacon, para alguns autores o introdutor do método experimental, serve-se da aliança de duas faculdades: a experimental e a racional. Através dela, refaz ideias, corrige velhas doutrinas e conceitos, comprova o saber antigo e descobre coisas novas.

Garcia de Orta investiga minuciosamente as fontes clássicas e emenda-as com provas experimentais. Apontado as posições erradas, mesmo dos seus mestres mais diretos, a «verdade científica» acima de tudo, não condescendendo perante as maiores autoridades, usando de subtileza algumas vezes, noutras, duma forma incisiva, a sua crítica é demolidora. O diálogo com Ruano e com várias outras figuras fictícias e reais dos seus Colóquios, fazem do seu trabalho uma obra admirável, de estilo e conteúdo incomparáveis.

Muitos e diversos foram os seus contributos para o estudo da Botânica, da Zoologia, da Etnologia e da Etnografia hindustânicas e de outras partes do Oriente, e para um melhor conhecimento das Medicinas de tais povos.

Orta foi, e uma vez mais o afirmamos, um pioneiro da ciência experimental, em particular de medicina experimental (Farmacologia e Terapêutica). Procuramos argumentar a sua posição, servindo-nos de algumas passagens dos seus Colóquios.

Publicada na cidade de Goa em 1563, a sua obra Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, foi traduzida para Latim por Charles de L'Écluse ou Clusio em 1567. Esta edição goesa, raríssima, veio a ser reeditada em Portugal em 1872, e mais recentemente em 1891-1892 (2 volumes) pela Academia das Ciências de Lisboa.

Seguindo rigorosamente o texto desta última edição, eis a nomenclatura dos 59 Colóquios em que ela se divide:

            I                      - Introdução

            II                     - Aloés

            III                   - Ambar

            IV                   - Amomo

            V                     - Anacárdio

            VI                   - Árvore Triste

            VII                  - Altitude, Anjudem, Assafétida e Anil

            VIII                - Bangue

            IX                   - Benjoim

            X                     - Ber e Brindões

            XI                   - Cálamo Aromático e Cáceras

            XII                  - Cânfora e Carambolas

            XIII                - Cardamomo e Carandas

            XIV                - Cássia-Fistula

            XV                  - Canela, Cássia-Linha e Cinamomo

            XVI                - Coco comum e das Maldivas

XVII               - Costo e Colérica-Passio

            XVIII              - Crísocola, Croco Indiano e Curcas

            XIX                 - Cúbedas

            XX                  - Datura e Duriões

            XXI                 - Ebur ou Marfim e do Elefante

            XXII               - Faufel e Figos da Índia

            XXIII              - Fólio Indo

            XXIV              - Galanga

            XXV               - Cravo

            XXVI              - Gengibre

            XXVII                        - Ervas

            XXVIII           - Jaca, Jambolões, Jambos e Jangomas

            XXIX              - Lacre

            XXX               - Linaloes

            XXXI              - Cate

            XXXII             - Maça e Noz

            XXXIII           - Maná

            XXXIV           - Mangas

            XXXV             - Margaridas

            XXXVI           - Mungo e Melão da Índia

            XXXVII         - Mirabolanos

            XXXVIII        - Mangostães

            XXXIX           - Negundo

            XL                  - Nimbo

            XLI                 - Anfião

            XLII               - Pau da Cobra

            XLIII              - Diamante

            XLIV              - Pedras Preciosas

            XLV               - Pedra Bazar

            XLVI              - Pimenta

            XLVII             - Raiz da China

            XLVIII           - Ruibarbo

            XLIX              - Sândalo

            L                     - Espiquenardo

            LI                    - Espódio

            LII                  - Esquinanto

            LIII                 - Tamarindos

            LIV                 - Turbite

            LV                  - Incenso e Mirra

            LVI                 - Tutia

            LVII               - Zedória e Zerumbete

            LVIII              - Cousas Novas

            LIX                 - Colóquio do Bétele

Ao longo dos Colóquios, Orta procura cimentar as suas observações e conclusões duma forma inabalável, quase dogmática. Sustentando tal atitude, usa imensas vezes expressões como estas: «eu experimentei», «falando a verdade», «esta é verdade», «não o sei bem sabido», «por meus olhos eu vi», «segundo experimentei» etc.

No discurso, alguns aspetos pontuais repreensíveis, insignificantes, contudo (na nossa opinião), quando observados no contexto geral da obra, merecem, no entanto, alguns reparos. Criticando as autoridades e os antigos que tantas vezes firmavam o seu saber na opinião de outrem, dando crédito a erros que se chegavam a ensinar durante séculos, ele próprio enferma dessa imprudência.

Augusto Abelaira, no trabalho que lhe serviu de tese de licenciatura – «Garcia de Orta, um experiencialista do séc. XVI (Alguns Problemas)» (27), a que se refere Joaquim Barradas de Carvalho (em obra citada), traça de uma forma inconfundível a análise crítica dos Colóquios, perspetivando as várias contradições do seu autor. Orta, segundo Abelaira, baseava o seu conhecimento não só na Experiência e na Razão, mas também na Fé.

Garcia de Orta, imprudentemente, toma assim como verdadeiro aquilo que é dito por «pessoas mui dignas de fé (…)» (XLVI-246). Em várias outras passagens, tal fé está de novo presente no discurso: «(…) porque se formos duas testemunhas, ajuntadas de Malaca, darlheemos autoridade.» (LVIII-382); «E isto soube eu de Portuguezes, dignos de fé, que me deixerão (…)» (XIX-288).

As testemunhas visuais, dignas de crédito, tinham para ele, grande importância. A propósito do Unicórnio, diz-nos: «Dizem tantas cousas incertas desse animal, que, por nam as saber bem, não as queria contar; porque as pessoas que mas contam, não as contam como testemunhas de vista.» (XXI-75).

Estes aspetos contraditórios, e alguns outros que se lhe poderiam apontar o seu método do mesmo género, contidos nas suas afirmações, denotam que o seu método ainda não contém totalmente o critério e o rigor científico inerentes ao verdadeiro Experimentalismo.

Alicerçando-se em muitos contributos que advêm desde a Idade Média, a ciência experimental só vem a aperfeiçoar-se nos séculos XVII e seguintes e a atingir o seu máximo expoente com Claude Bernard em 1878.

Claude Bernard aponta as vias fundamentais a que o espírito humano e a Ciência devem recorrer para, duma forma racional e lógica, se ultrapassarem a desordem e o caos natural aparente das coisas, captados instintivamente pelos sentidos:

1ª – A primeira coisa que um Homem faz é ver duma forma geral o que está à sua volta. Daqui ele fica com uma ideia confusa, adquirindo uma espécie de conhecimento instintivo das coisas.

2ª – Em seguida, observa de mais perto o que ele não havia feito senão de um modo geral, empirismo.

3ª – Então, o Homem emite uma ideia, uma hipótese sobre o que ele viu.

4ª – O Homem verifica a sua hipótese pela observação ou pela experiência.

5ª – Daqui resulta a Teoria da Ciência.

Orta seguiu muitas vezes os passos que viriam a ser aconselhados por C. Bernard. Sirvamo-nos desta passagem: «He costume dos boticários da Índia (a quem chamam guandis) secálo ao sol, dizem que secálo à sombra o faz preto. E dahi o tomaram os nossos boticários, e por experiência se acha isto do modo de secar esta mesinha. E já pode ser o que for preto por ser seco com a sombra seja melhor, mas até o presente não o esprementei.» (LIV-331). Na verdade, o nosso experimentalista admitia a possibilidade do turbitepreto e sem goma (por ter sido, provavelmente, seco à sombra) ser tão bom como o branco e gomoso. Todavia, a sua reserva é evidente, e a cautela com que age em relação à possibilidade de vir a considerar o turbite negro melhor que o branco, reside apenas na necessidade que vê em confirmar aquela hipótese.

«(…) até o presente, não o esprementei.» (LIV-331). Esta atitude, para não citar outras mais, reveladas nos Colóquios, antecipa Orta a Claude Bernard, pelo elevado senso de experimentalismo que contém.

Estabelecendo um princípio deontológico e ao mesmo tempo subordinando-se a normas de ética médica experimental, afirma que «não é bom experimentar mézinhas não sabidas.» (IV-59). Repare-se na atualidade deste princípio, regra básica e fundamental a seguir pelos médicos e organismos de saúde em todos os países. Antes de se lançar no mercado terapêutico, quaisquer produtos ou substâncias com propriedades farmacoterápicas, são obrigatória e necessariamente ensaiados in vitro e in vivo, antes da sua aplicação no ser humano.

A verdade não deve estar subordinada a nada ou a ninguém. O tido como certo hoje pode amanhã já não o ser. É um princípio de progresso cultural e científico. A verdade não se possui nunca, algo fica sempre por descobrir. Constrói-se hoje o saber, para amanhã, se possível, o podermos corrigir um pouco mais. Para Orta, também «a verdade tem pés, e anda e nunca morre» (LVII-365). «O nosso saber é a mais pequena parte do que ignoramos» (…). O erro e a falsidade devem ser combatidos, mesmo que os seus responsáveis sejam vultos veneráveis do saber. As autoridades consagradas não lhe abalaram a sua dúvida metódica, o seu ceticismo. Na sua pesquisa da verdade, os nomes sonantes e conceituados também não sossegaram nem impediram de estabelecer as suas críticas no momento exato.

«(…) e em repreender aos que dizem que carabe, fez bem Avicena, mas errou em dizer que tem as propriedades (…)» (XXIX-31-2).

«E diguo, como já dixe, que Serapio se enganou (…)» (XXIX-36).

«E o que diz Mateus Silvático é muito falso» (XIII-185).

Sobre Avicena e Serapião comenta ainda: «(…) de longas vias, longas mentiras» (XII--154).

Algumas vezes, menos ríspido e direto, critica sabiamente com diplomacia, servindo-se de pura dialética. Quando Ruano lhe pergunta: «Como, todos esses que diseis, erraram?», Orta responde: «Si; se chamaes errar a dizer o que não he» (XLVI-243).

Orta, apesar de sujeito a múltiplas limitações dependentes quer da sua própria personalidade e formação, quer do envolvimento cultural e mental em que viveu, soube projectar o raciocínio para além das barreiras do seu tempo. Não foi, na verdade aceção da palavra, nem criador do método experimental, anterior a si, nem um experimentalista puro mas, a sua ação no domínio médico-farmacológico identifica-se, indiscutivelmente, com a nova via de acesso ao conhecimento científico.

Conclusão

A leitura dos “Colóquios” permitiu aos biógrafos de Orta não só a possibilidade de conhecer múltiplas facetas da sua personalidade, como de definir com alguma precisão a sua bagagem cultural e bibliográfica. Este último aspeto foi, de certo modo, analisado por Conde Ficalho na sua obra Garcia de Orta e o seu Tempo. Apontando-os como principais autores citados por Orta nos “Colóquios”, este biógrafo dá-nos uma listagem com cerca de 59 personagens, entre antigos, medievais e modernos.

Orta entrou em contacto com muitos deles, sobretudo os de formação clássica greco-latino-arábica, através das suas obras, recomendadas e de leitura obrigatória durante a sua aprendizagem escolar-universitária realizada em Salamanca, Alcalá e, mais tarde, também em Portugal, por exigência das suas funções docentes.

Em Espanha, dada a ótima formação teórica ministrada nas universidades, ficámos convictos que terá tido acesso a grande parte dos livros escritos pelos mais conceituados nomes da cultura clássica e moderna. Os livros eram nesta época muito raros, a impressão era ainda novidade e as condições eram pequenas e onerosas. Ter acesso a uma obra, fora de uma biblioteca pública, régia ou universitária, era um luxo a que nem todos conseguiam chegar.

Acreditamos que Orta, já por si um felizardo, face à preparação universitária que os pais ou protetores (eventualmente Lopo de Sousa ou Martim Afonso de Sousa) lhe propiciaram no estrangeiro, tenha também tido cabedais suficientes para a aquisição de alguns livros, cujo conteúdo parece ter conhecido, conforme se depreende pela leitura dos Colóquios. Terá, eventualmente, copiado alguns deles enquanto estudante ou durante a sua docência da Universidade portuguesa.

As suas relações com altas figuras da vida e da cultura lisboetas, sobretudo a partir da entrada no ensino superior, ter-lhe-ão granjeado sólidas e profícuas amizades.

Parte para a Índia mas, julgamos não ter quebrado, de todo, esses contactos, estabelecendo e continuando a alimentar relações de intercâmbio cultural com o Velho Continente. Tal hipótese dar-lhe-ia a possibilidade de conhecer, quase de imediato, as últimas novidades da cultura portuguesa e europeia. As crescentes edições de autores modernos e antigos, as novas conceções e doutrinas surgidas no mundo ocidental chegavam, não restam dúvidas, àquelas longínquas paragens. E Orta, sequioso de notícias, através da transmissão oral ou escrita, mantinha-se permanentemente atualizado.

No Oriente, durante o tempo que acompanhou Martim Afonso de Sousa, viajou por múltiplos lugares, conheceu gente rica e ilustre, mercadores, califas, médicos e intelectuais. Manteve contactos assíduos com vários médicos de formação hindu e árabe. Em relação a estes últimos, informa-nos no seu Colóquio II que a sua sabedoria é considerável, pois receitam de cor Avicena, Hali Rodoam, Razés e Mesué e conhecem as obras de Platão, Aristóteles, Hipócrates e Galeno.

Para além dos seus objetivos científicos, Garcia de Orta terá rumado à Índia, também na mira da fortuna. Como médico serviu príncipes, nobres e sultões e amealhou, decerto, bons proventos. Foi mercador de pedras preciosas, estudou-lhes as virtudes terapêuticas e soube, com certeza, aproveitá-las como fonte de lucro e riqueza.

Assim, a vasta bibliografia descoberta nos “Colóquios”, faz-nos supor que o ilustre naturalista teria de possuir, bem à mão, uma magnífica biblioteca (ainda que constituída, apenas, por Súmulas das grandes obras do seu tempo), instrumento fundamental à realização do seu trabalho.

Entre os autores que aponta, alguns deles foram seus contemporâneos e as suas obras são edições que datam das primeiras décadas do séc. XVI. Há mesmo livros que só vêm a ser conhecidos após a sua partida para a Índia. Assim, poderíamos levantar várias hipóteses sobre este assunto:

– Orta teria levado consigo na bagagem uma razoável biblioteca, mas nunca com a dimensão que lhe vimos a reconhecer nos seus Colóquios. Admitimos que alguns trechos, nos quais Orta comenta autores clássicos, possam ter sido reproduzidos, ipsis verbis, de memória (decerto prodigiosa), fruto de atentas e inúmeras leituras.

Por outro lado, não é de todo impossível que nos seus contactos no Oriente, entre ambientes cultos e homens que ele próprio reconhece, como já dissemos, possuidores de grande preparação cultural, não tenha tido acesso a valiosíssimas bibliotecas, onde o saber greco-latino-arábico estava depositado e ao alcance de consulta.

Embora admitindo várias hipóteses explicativas sobre o assunto, o que nos parece mais provável, após várias posições consideradas, é que Orta, munido de grande preparação teórica livresca, conhecedor das boas obras clássicas e modernas, levou consigo algumas delas para a Índia. Ali, auferindo bons rendimentos pelas atividades que desempenhou como mercador e médico, rapidamente pôde dispor de capital, até aí bem limitado. Com outras posses, senhor e ciente do que pretendia adquirir em termos documentais e bibliográficos, em permanente contacto com a Europa, Lisboa e, porque não, com outros centros culturais (de Espanha, por exemplo), enriquece assim enormemente o seu património livresco, a sua biblioteca, magnificamente retratada nos Colóquios.

O espírito português da Época Moderna revolucionou radicalmente doutrinas e conceitos, clarificou realidades, extinguiu fantasias e mitos e aproximou os homens um pouco mais da certeza e da verdade.

No mar, mas também em terra, os portugueses dos Descobrimentos criaram uma cultura nova, de base experimental e tendência crítica, "universalista", como diria Jaime Cortesão.

Seguindo uma diretriz de pensamento subordinada à curiosidade objetiva, à observação rigorosa e à experiência, os portugueses do séc. XVI criam novas conceções da vida e do mundo. Os sábios, filósofos e doutores antigos são, pela primeira vez, postos em causa.

Os critérios da «ciência moderna» surgem bem patentes nas obras que estes homens vão realizando a todos os níveis culturais. O despontar da mentalidade experimentalista é, de facto, o advento do novo espírito científico.

Os “Colóquios” de Garcia de Orta são bem a imagem dessa inovação. Decalcando o que ao longo deste estudo e, sobretudo, no último capítulo tornámos conclusivo, achamos que Orta, distanciando-se do contexto geral da sua época, não se limitou apenas ao plano descritivo, como nos pretende fazer crer Conde de Ficalho.

Não sendo totalmente rigoroso na utilização da via experimental, em termos científicos, também não se limitou a simples estudos morfológicos e farmacêuticos da Natureza Oriental.

Criando e defendendo novos parâmetros de descoberta e prova da verdade em total antagonismo com os ditames da Escolástica e da Teologia, cada vez mais anquilosadas e ultrapassadas, Orta lança com os “Colóquios” mais uma pedra no alicerce secular da ciência experimental.

As passagens em que procurámos ilustrar tal contributo, parecem-nos bem demonstrativas do seu pioneirismo na História do método científico experimental.

Notas e referências bibliográficas

(1) –Escolástica, Inquisição, Igreja Contra-Reformista, marcas de importância secular na cultura Ibérica, não só não permitiam a difusão de novos conceitos ou ideias, heréticos aos seus olhos, como asfixiavam, à partida, toda e qualquer intenção de demonstrar a Verdade por vias diferentes dos seus credos.

(2) –Aqui, como no estrangeiro, o ensino universitário assentava no saber livresco, de «carácter dedutivo, pouco ou nada científico no sentido moderno da palavra» (Maria Tereza Fraga. Humanismo e Experimentalismo na Cultura do século XVI, p. 41).

(3) –Edward McNall Burns. História da Civilização Ocidental, p. 374.

(4) –Luís de Pina. Expressão Universitária, Metodologia Científica e Sentido Ético da Epopeia Henriquina das Descobertas, p. 13).

(5) –Bacon, na sua Opus Magus, não se considera entre os maiores sábios ou investigadores do seu tempo. Fala-nos, contudo, e com entusiasmo, de Pierre de Maricourt a quem chamava dominus experimentorum – o mestre das experiências:

«O que os outros, com esforço, não veem senão vaga e obscuramente, como morcegos ao crepúsculo, ele (Pierre de Maricourt) vê-o às claras, porque é o mestre da experiência.»

Jean Gimpel. A Revolução Industrial da Idade Média, p. 187-8.

(6) –Maria Tereza Fraga. op. cit., p. 41.

(7) –Duarte Pacheco Pereira. Esmeraldo de Situ Orbis. apud Joaquim Barradas de Carvalho. Portugal e as Origens do Pensamento Moderno, p. 112.

(8) –Idem, Ibidem.

(9) –Fórmula que se atribui a vários cronistas portugueses: Infante D. Pedro, Fernão Lopes, D. Duarte, Gomes Eanes de Zurara, Fernão Lopes Castanheda, Gaspar Correia e ao próprio Camões.

(10) –Frase que de atribui a Leonardo de Vinci (1508).

(11) –Em documento de D. Afonso de Aragão, em 1438, e no Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira (1505-1508).

(12) –Curiosamente, Laranjo Coelho, no seu trabalho “Três Médicos Cientistas Naturais de Castelo de Vide”, dá-nos a informação da naturalidade de Orta, segundo a perspetiva dos seus biógrafos (acima apontados) – Elvas. Mas na p. 25 do mesmo estudo, afirma o seguinte: «Passada a sua infância e adolescência nesta sua vila natal de Castelo de Vide foi Garcia d'Orta…» (P.M. Laranjo Coelho. op. cit., p. 24). Há aqui, portanto, uma contradição.

(13) –Santo Adrião do Sever. Bibliotheca Lusitana apud Conde de Ficalho. Garcia da Orta e o seu Tempo, p. 1.

(14) -Estas Súmulas (Summulae Logicales), que Orta acabaria por vir a ler também como professor em Lisboa, são o resumo das “Lógicas” dos antigos, Boecio, Porphyrio e principalmente Aristóteles, escrito obviamente, dentro da mais pura linha escolástica e, necessariamente, descrito segundo o gosto e o estilo medievais.

(15) –A aquisição deste título era bastante difícil nessa época, pois não só exigia os necessários conhecimentos científicos (e tal preparação não seria empresa transcendente para Orta), como eram obrigatórios determinados requisitos de pompa e ostentação académica e social, decerto bem onerosos para qualquer candidato. Exigiam-se: – a construção e ornamentação dos estrados para o ato; um passeio solene pelas ruas de Salamanca, de toda a Universidade, a cavalo e em traje de gala, precedida por trombetas e atabales; a tourada de estilo, a que não faltava um passeio para ver o gado no prado, e outros atos. Tudo acompanhado de merendas, distribuição de donativos e grande consumo de açúcar (Conde de Ficalho. Garcia de Orta e o seu Tempo, p. 28).

(16) –“Garcia de Orta”, in Serrão, Joel (Dir). Dicionário de História de Portugal (Vol. IV), p. 484-86

(17) –Conde de Ficalho. Garcia de Orta e o seu Tempo. p. 2.

(18) – As pedras preciosas são apontadas nos seus Colóquios, em relação às suas virtudes tera­pêuticas.

(19) –Composta em oficina pertencente a João de Endem, mestre tipógrafo alemão.

(20) –Sua irmã, Catarina, é presa em 28 de Outubro de 1568 e, antes de ser queimada em 25 de Outubro de 1569, denuncia praticamente toda a família aos inquisidores (P.M. Laranjo Coelho. op. cit., p. 40).

(21) –As suas cinzas foram lançadas ao rio Mandovi.

(22) –Na Universidade Portuguesa, só no séc. XVIII, com a Reforma Pombalina de 1772, Avicena veio a perder a importância que até aí se lhe reconhecia.

(23) –Cf. Garcia de Orta. “Colóquios dos Simples” (Vol. II), Colóquio LVIII, p. 379.

(24) –Prior de Mafra e Arcebispo de Braga, Pedro Hispano viria a ser o primeiro Papa português, eleito em 1276 com o nome de João XXI.

(25) –Conde de Ficalho. op. cit., pp. 284-97.

(26) –Enciclopédia da Pléiade - As Ciências (Vol. I), p. 469.

(27) –Esta obra, cotejada na Biblioteca da Faculdade de Letras de Lisboa, no ficheiro que diz respeito a Teses de Licenciatura, lamentavelmente, não a pudemos consultar por já não existir em depósito, desconhecendo-se o seu paradeiro atual.

Bibliografia

Fonte:

Orta, Garcia de, Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, (2 Vols.), ed. dirigida e anotada por Conde de Ficalho, Lisboa, Imprensa Nacional, 1891-1892.

Bibliografia auxiliar:

Burns, Edward McNall. História da Civilização Ocidental (Vols. I-II). 1ª ed. portuguesa. Lisboa: Editora Globo/Centro do Livro Brasileiro; 1977.

Carvalho, Joaquim Barradas de. Portugal e as Origens do Pensamento Moderno. Col. Horizonte, nº 42. Lisboa: Livros Horizonte; 1981.

Idem. As Fontes de Duarte Pacheco Pereira no «Esmeraldo de Situ Orbis». Estudos Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda; 1982.

Coelho, P.M. Laranjo. Três médicos cientistas naturais de Castelo de Vide. [Separata de] O Instituto (Vol. CXVI). Coimbra; 1953.

Damas, Maurice (Dir.). Enciclopédia da Pléiade – As Ciências (Vol. I). Lisboa: Arcádia Lda; s.d.

Ficalho, Conde de. Garcia de Orta e o seu Tempo. reprod. fac. similada da 1ª ed. Temas Portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda; 1983.

Fraga, Mª Tereza de. Humanismo e Experimentalismo na Cultura do séc. XVI. Coimbra: Livraria Almedina; 1976.

Gimpel, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Col. Saber. Lisboa: Publicações Europa América; 1976.

Peterson, Marianna Allen. Introdução à Filosofia Medieval. Fortaleza/Ceará (Brasil): Edições U.F.C. Proedi; 1981.

Pina, Luís de. Expressão Universitária, Metodologia Científica e Sentido Ético da Epopeia Henriquina dos Descobrimentos. [Separata de] Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique (Vol. III). s.l.; 1963. (Oração de Sapiência proferida na Universidade do Porto, em 20.Out.1960).

Revista da Junta de Investigação do Ultramar : Garcia de Orta ( Vol. II, nº 4). Lisboa: J.Inv. do Ultramar; 1963.

Serrão, Joel (Dir.). Dicionário de História de Portugal (vol. IV). Porto: Livraria Figueirinhas; 1985.

Silva Dias, J.S. da. Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do séc. XVI. Lisboa: Editorial Presença; 1982.

Sousa, A. Tavares de. Curso de História da Medicina – Das origens aos fins do séc. XVI. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian; 1981.

 

João Frada

Professor Universitário (Ph.D.)

 

 

 



 


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