(https://www.publico.pt/.../ferro-defende-que-deputados-das-ilhas-nao-infringiram-nenhu...)
Isto tem a ver com a duplicação de subsídios de viagens para os deputados eleitos pelas ilhas. Beneficiando do normal subsídio de Estado recebido por qualquer cidadão residente nas regiões autónomas, desde que apresentando um comprovativo dos CTT, e do respectivo subsídio ou compensação semanal de 500 euros (ainda que não efectuem qualquer viagem), concedido pelo Parlamento para o mesmo efeito, o deputado ilhéu acaba por ter direito a um montante que cobre o custo global da deslocação e lhe propicia ainda um considerável excedente, o qual, legalmente, não é obrigado a devolver às finanças públicas.
Eticamente, porém, o caso assume outra configuração. Pois se um deputado recebe do Parlamento mais do que o suficiente por semana para se deslocar ao local de residência (nos Açores ou na Madeira), fará sentido, sempre que viaja, vir também a reclamar o reembolso do custo do bilhete concedido pelo Estado, "benesse" indistintamente extensiva a todos os [outros] cidadãos residentes?!
Pelos vistos, os deputados que têm recorrido a esta dupla compensação são indivíduos de todos os partidos políticos: José Paulino de Ascenção (BE), Paulo Neves (PSD), Carlos Pereira (PS), João Azevedo Castro (PS), Luís Vilhena (PS), Lara Martinho (PS), Carlos César (PS) e outros.
O Parlamento, todavia, ao longo da nossa jovem democracia, tem sido fértil em situações deste tipo, em que a legalidade e a ilegalidade andam quase de mãos dadas e a ética é uma “nebulosa” difícil de descortinar.
Lembremos o caso das “viagens-fantasma”, “longa metragem” realizada, seguramente, durante mais de uma década, entre meados dos anos setenta (1975) e finais dos anos oitenta (1989), com projecção e estreia vergonhosa no Parlamento português nesta última data, da qual viria a ser António Coimbra, deputado do PSD, o principal protagonista, que ficaria conhecido pelo “Batman”! O dinheiro que lhe foi atribuído pelo Parlamento para pagar as três deslocações anuais ao estrangeiro, muitas delas nunca realizadas, serviu essencialmente para pagar viagens, refeições, telefonemas e alojamentos de familiares. Um jornalista da época, perplexo perante a comicidade da situação, chegou mesmo a afirmar que este deputado requisitou ao Parlamento o pagamento de tantas ou tão poucas deslocações, que bem poderia ter dado uma volta ao mundo, à conta do erário público. O inquérito levantado em 1989 a estas viagens, após a morosidade habitual determinada pelos sucessivos adiamentos, por ausência do arguido, entre 1991 e 1996, apenas viria a conheceu o seu desfecho final em 1996, data em que António Coimbra recebeu, finalmente, uma pena suspensa de três anos de prisão, por burla agravada. Porém, outros deputados e, entre eles, Luís Filipe Menezes, alegadamente, haviam cometido irregularidades do mesmo género, em relação a esta prática de requisições de viagens e de indevidos depósitos em conta-corrente nas agências de viagem onde habitualmente tratavam das suas deslocações. Todavia, como se tratava de um assunto demasiado delicado, envolvendo estas altas castas da nação, supostamente impolutas e indemnes a irregularidades desta e de outra natureza, o Tribunal de Contas nunca viria a denunciar à PGR estas mazelas, e apenas António Coimbra terá sentido na pele a vergonha de se ver confrontado com as suas artimanhas ilegais, na barra do tribunal.
No entanto, António Coimbra não foi o último deputado a encerrar a era das prevaricações no capítulo das viagens. “Em 12 de abril de 1986, noticiava o Expresso, em primeira página, que deputados, em deslocação ao México, tinham trocado bilhetes de avião em primeira classe por bilhetes de turística”.
Miguel de Albuquerque, actual Presidente do Governo Regional da Madeira, referindo-se ao mesmo caso, afirma-nos que “esta bronca rebentou e também respingou para deputados eleitos pela Madeira”.
Os ditos deputados arrecadariam, deste modo, a diferença ou, acumulavam-na numa conta-corrente destinada a pagamento de despesas pessoais e futuras viagens, suas, de amigos ou familiares. Reconhecida como uma prática corrente na Assembleia, apenas em alguns casos, a referida diferença era e foi devolvida ao Parlamento.
Estas questões de alegadas faltas de ética e de “ajustes” favoráveis da lei, no Parlamento, não acabam por aqui. Em 1997, o Tribunal de Contas, após auditoria às contas da Assembleia da República de 1994, constata que 23 deputados haviam gasto verbas indevidamente, utilizando de novo o mesmo processo de “desdobramento de viagens”, sem devolverem a respectiva diferença ao Parlamento. Almeida Santos, nessa altura, presidindo à Assembleia da República, viria à comunicação social, em particular, à televisão, afirmar que a situação era melindrosa, mas que iria ser corrigida, apaziguando, de certo modo, a opinião pública, estupefacta com a recorrência ou reincidência destas manigâncias parlamentares. Ninguém viria a ser punido, pois esta prática, na verdade, era larga e vulgarmente seguida entre os deputados de todos os partidos. A partir daqui, viria a ser regulada a reposição da diferença entre os custos de viagens, sempre que o passageiro optasse por um lugar mais económico. Atente-se que, nessa altura, duas viagens em turística ficavam quase sempre mais baratas do que uma só em primeira classe.
Do igual modo, perante as recentes notícias vindas a lume, é o próprio Ferro Rodrigues, que, embora convicto de não ter havido qualquer infracção a leis ou princípios éticos em matéria de despesas de deslocação, vem a sugerir à Comissão para a Transparência e à Comissão de Assuntos Constitucionais a análise e possibilidade de alteração das regras de apoio a viagens dos deputados. Aguardemos, então, pelo fim desta polémica!
Não obstante acreditarmos que alguma coisa possa vir a ser corrigida futuramente no domínio normativo, extensivo a subsídios de viagens dos parlamentares, perante os dados históricos, recentes e passados, assiste-nos o direito de formular algumas dúvidas:
- Ou Eduardo Ferro Rodrigues estará mesmo convicto do que diz, que “os deputados das regiões autónomas não infringiram nenhuma lei nem nenhum princípio ético, nem nesta nem em qualquer legislatura”, relativamente às despesas de deslocação, …porque as alegadas faltas de ética, a existirem, reportam-se a outro grupo de deputados e já fazem parte do “arquivo morto”…afinal de contas, ocorreram no século passado…ou, então, ao contrário de Miguel de Albuquerque, Ferro Rodrigues se não pretendeu passar uma esponja sobre os erros do passado, “noutras legislaturas”, revela alguma amnésia em relação aos factos apurados pelo TC, supracitados. Não sabemos o que pensar. Mas, a amnésia selectiva, por vezes, dá jeito, sobretudo em política.
- Como última hipótese, custando-nos muito a encarar essa possibilidade, porque é um homem inteligente e ponderado, Ferro Rodrigues achará, porventura, como tantos outros políticos, que “o povo é burro e tem memória curta”?
João Frada
Professor Universitário (Ph.D.)
Calendas Semânticas 2000
Eticamente, porém, o caso assume outra configuração. Pois se um deputado recebe do Parlamento mais do que o suficiente por semana para se deslocar ao local de residência (nos Açores ou na Madeira), fará sentido, sempre que viaja, vir também a reclamar o reembolso do custo do bilhete concedido pelo Estado, "benesse" indistintamente extensiva a todos os [outros] cidadãos residentes?!
Pelos vistos, os deputados que têm recorrido a esta dupla compensação são indivíduos de todos os partidos políticos: José Paulino de Ascenção (BE), Paulo Neves (PSD), Carlos Pereira (PS), João Azevedo Castro (PS), Luís Vilhena (PS), Lara Martinho (PS), Carlos César (PS) e outros.
O Parlamento, todavia, ao longo da nossa jovem democracia, tem sido fértil em situações deste tipo, em que a legalidade e a ilegalidade andam quase de mãos dadas e a ética é uma “nebulosa” difícil de descortinar.
Lembremos o caso das “viagens-fantasma”, “longa metragem” realizada, seguramente, durante mais de uma década, entre meados dos anos setenta (1975) e finais dos anos oitenta (1989), com projecção e estreia vergonhosa no Parlamento português nesta última data, da qual viria a ser António Coimbra, deputado do PSD, o principal protagonista, que ficaria conhecido pelo “Batman”! O dinheiro que lhe foi atribuído pelo Parlamento para pagar as três deslocações anuais ao estrangeiro, muitas delas nunca realizadas, serviu essencialmente para pagar viagens, refeições, telefonemas e alojamentos de familiares. Um jornalista da época, perplexo perante a comicidade da situação, chegou mesmo a afirmar que este deputado requisitou ao Parlamento o pagamento de tantas ou tão poucas deslocações, que bem poderia ter dado uma volta ao mundo, à conta do erário público. O inquérito levantado em 1989 a estas viagens, após a morosidade habitual determinada pelos sucessivos adiamentos, por ausência do arguido, entre 1991 e 1996, apenas viria a conheceu o seu desfecho final em 1996, data em que António Coimbra recebeu, finalmente, uma pena suspensa de três anos de prisão, por burla agravada. Porém, outros deputados e, entre eles, Luís Filipe Menezes, alegadamente, haviam cometido irregularidades do mesmo género, em relação a esta prática de requisições de viagens e de indevidos depósitos em conta-corrente nas agências de viagem onde habitualmente tratavam das suas deslocações. Todavia, como se tratava de um assunto demasiado delicado, envolvendo estas altas castas da nação, supostamente impolutas e indemnes a irregularidades desta e de outra natureza, o Tribunal de Contas nunca viria a denunciar à PGR estas mazelas, e apenas António Coimbra terá sentido na pele a vergonha de se ver confrontado com as suas artimanhas ilegais, na barra do tribunal.
No entanto, António Coimbra não foi o último deputado a encerrar a era das prevaricações no capítulo das viagens. “Em 12 de abril de 1986, noticiava o Expresso, em primeira página, que deputados, em deslocação ao México, tinham trocado bilhetes de avião em primeira classe por bilhetes de turística”.
Miguel de Albuquerque, actual Presidente do Governo Regional da Madeira, referindo-se ao mesmo caso, afirma-nos que “esta bronca rebentou e também respingou para deputados eleitos pela Madeira”.
Os ditos deputados arrecadariam, deste modo, a diferença ou, acumulavam-na numa conta-corrente destinada a pagamento de despesas pessoais e futuras viagens, suas, de amigos ou familiares. Reconhecida como uma prática corrente na Assembleia, apenas em alguns casos, a referida diferença era e foi devolvida ao Parlamento.
Estas questões de alegadas faltas de ética e de “ajustes” favoráveis da lei, no Parlamento, não acabam por aqui. Em 1997, o Tribunal de Contas, após auditoria às contas da Assembleia da República de 1994, constata que 23 deputados haviam gasto verbas indevidamente, utilizando de novo o mesmo processo de “desdobramento de viagens”, sem devolverem a respectiva diferença ao Parlamento. Almeida Santos, nessa altura, presidindo à Assembleia da República, viria à comunicação social, em particular, à televisão, afirmar que a situação era melindrosa, mas que iria ser corrigida, apaziguando, de certo modo, a opinião pública, estupefacta com a recorrência ou reincidência destas manigâncias parlamentares. Ninguém viria a ser punido, pois esta prática, na verdade, era larga e vulgarmente seguida entre os deputados de todos os partidos. A partir daqui, viria a ser regulada a reposição da diferença entre os custos de viagens, sempre que o passageiro optasse por um lugar mais económico. Atente-se que, nessa altura, duas viagens em turística ficavam quase sempre mais baratas do que uma só em primeira classe.
Do igual modo, perante as recentes notícias vindas a lume, é o próprio Ferro Rodrigues, que, embora convicto de não ter havido qualquer infracção a leis ou princípios éticos em matéria de despesas de deslocação, vem a sugerir à Comissão para a Transparência e à Comissão de Assuntos Constitucionais a análise e possibilidade de alteração das regras de apoio a viagens dos deputados. Aguardemos, então, pelo fim desta polémica!
Não obstante acreditarmos que alguma coisa possa vir a ser corrigida futuramente no domínio normativo, extensivo a subsídios de viagens dos parlamentares, perante os dados históricos, recentes e passados, assiste-nos o direito de formular algumas dúvidas:
- Ou Eduardo Ferro Rodrigues estará mesmo convicto do que diz, que “os deputados das regiões autónomas não infringiram nenhuma lei nem nenhum princípio ético, nem nesta nem em qualquer legislatura”, relativamente às despesas de deslocação, …porque as alegadas faltas de ética, a existirem, reportam-se a outro grupo de deputados e já fazem parte do “arquivo morto”…afinal de contas, ocorreram no século passado…ou, então, ao contrário de Miguel de Albuquerque, Ferro Rodrigues se não pretendeu passar uma esponja sobre os erros do passado, “noutras legislaturas”, revela alguma amnésia em relação aos factos apurados pelo TC, supracitados. Não sabemos o que pensar. Mas, a amnésia selectiva, por vezes, dá jeito, sobretudo em política.
- Como última hipótese, custando-nos muito a encarar essa possibilidade, porque é um homem inteligente e ponderado, Ferro Rodrigues achará, porventura, como tantos outros políticos, que “o povo é burro e tem memória curta”?
João Frada
Professor Universitário (Ph.D.)
Calendas Semânticas 2000
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