Ao longo dos tempos, talvez mesmo antes de Hipócrates, entre os Egípcios faraónicos, a relação médico-doente que privilegia, acima de tudo, a alta individualidade de cada “pessoa humana”, surge-nos como um binómio quase sacralizado, no qual o “físico”, dotado das suas competências, espírito protoracionalista lógico, dedutivo e indutivo, exercita a sua “arte” de diagnóstico e terapêutica.
Hipócrates morreria no IV século a.C., mas a sua mensagem, essa, continuaria a ecoar pelos séculos fora. Com a Idade Média, o sentido ético e moral, recebido do Mestre, aliado ao espírito filantrópico e à caridade que emanam da atitude do físico, seja ele laico ou monástico-religioso, viria a constituir a marca cristã do Humanismo médico.
Em qualquer época, porém, a compreensão dos males do corpo ou do espírito passa pelo diálogo, pela confissão franca e objetiva das queixas que perturbam o indivíduo e o fazem sofrer. E a doença, de um modo geral, entre todos os povos e sociedades, é algo que desperta sempre a consciência e a emoção do terapeuta, o qual, por solidariedade, devoção e dever profissional, raramente é insensível ao sofrimento do seu semelhante. Curar é, acima de tudo, ouvir e amar.
Não obstante as diferenças determinadas pelos sistemas de valores culturais e civilizacionais, pelas crenças, pelos usos e costumes, pela subjetividade comportamental, étnica, intelectual ou afetiva, o Humanismo médico, tal como o concebemos, é, de facto, ecuménico e universal.
Um médico humanista, diz-nos Maragnon, é aquele que compreende o Ser humano. E “compreender não é só conhecer, mas amar”.
Mas se o espírito da mensagem hipocrática, como elemento fundamental da formação médica, se manteve indelével entre os seus cultores de todos os tempos, na praxis diária acabaria, também, por ser suscetível às transformações e mudanças determinadas pelos ritmos da História. E, a par do progresso tecnológico e científico que, dia a dia, vai ultrapassando as “barreiras do imprevisível”, sobretudo, a partir de 1900, com o desenvolvimento da microbiologia, do laboratório, das técnicas de radiodiagnóstico, da farmacologia clínica, da cibernética e da robótica, da engenharia genética e biomolecular, da telemedicina, de epidemiologia e da bioestatística, a relação médico-doente nunca mais seria a mesma.
Com o raiar da 2.ª metade do século XX, o Homem, enquanto ser doente, objeto de estudo personalizado da medicina, dá lugar ao número. Outrora com direito a tratamento individual e humanizado, é agora um alvo anónimo, sujeito a frios protocolos determinados pela bioestatística.
Foi, exatamente, neste contexto cultural, modelado pela estatística e pelo tecnicismo, que se formaram as novas gerações de médicos, em exercício no século XXI.
Outras razões, porém, parecem justificar o fenómeno da desumanização médica: - com a especialização, cada vez maior, observada na formação, sobretudo, hospitalar, os “eventuais” aspetos psicossomáticos da doença são, natural e frequentemente, remetidos para o foro da psiquiatria ou da psicologia clínica; - os serviços de consulta e de urgência hospitalares vivem e funcionam no limiar de rutura permanente; - o Sistema de Saúde mal responde às solicitações de uma sociedade cada vez mais inquieta, exigente e agressiva, mas, ao mesmo tempo, carente e dependente das respostas da Saúde e dos seus técnicos que, paradoxalmente, mitifica e desmitifica, idolatra e crucifica.
A empatia mágica, o tratamento personalizado e íntimo que o ato médico exige e determina não se desenvolve neste terreno agreste, nesta relação distante, apressada e vaga.
Cumprem-se protocolos, requisitam-se os exames complementares de diagnóstico mais sofisticados, procura-se compreender e tratar a doença. Os critérios científicos são rigorosamente seguidos. Mas o doente, esse, é uma realidade bem mais longínqua e difícil de atingir.
Humanizar o ato médico passa pela formação humanizada do futuro clínico. Essa formação terá que ser impregnada na base da sua educação escolar. O início dessa sensibilização deverá começar, senão antes, na seleção do candidato a Medicina, na própria orientação estrutural e funcional do ensino médico. O discente deverá confrontar-se, ao longo do curso, com uma ou mais disciplinas onde os seus dotes discursivos tenham que ser postos à prova. Adestrar o diálogo e retirar o essencial de qualquer informação, seja ela oral ou escrita, é uma arte e um saber imprescindível ao médico que ouve o doente, que reflete e intelectualiza as suas queixas, que incorpora o seu sofrimento e é capaz de lhe lançar, nas suas palavras concisas e objetivas, o bálsamo do alívio ou da cura.
Com pouca capacidade de síntese, com insuficiente adestramento na área do trabalho conceptual, muito virados à memorização exaustiva do que leem, os nossos alunos poupam-se ao diálogo. Pouco afeitos a leituras que exijam grandes esforços de sistematização, optam facilmente por exercícios de colagem ou, mesmo, de plágio, atitude que, para além de grave falta metodológica, nada contribui para melhorar o seu vocabulário e a sua capacidade de exposição escrita e, consequentemente, oral. Há, pois, que modificar, desde o início, o sistema de ensino e de preparação médica, integrando e assegurando, no currículo, áreas disciplinares orientadas para a formação linguística (língua-materna) e humanística, e para o adestramento do discurso. Exercitando e apurando, sob a orientação de especialistas, as suas capacidades de retórica e dialética, o estudante de Medicina, amanhã futuro médico, conhecerá mais facilmente o seu doente através do diálogo, do qual não mais prescindirá. Dispondo-se a falar e a ouvir o paciente, o médico, compreenderá melhor o seu sofrimento, as suas angústias, os seus medos, e é, exatamente, nesse “diálogo singular”, cujo efeito balsâmico fica, tantas vezes, muito para além da eficácia dos melhores fármacos, que ele irá descobrir a sua verdadeira vocação humanizada, curando os males do corpo e aliviando os males do espírito.
João Frada
Professor Universitário
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