Na sequência do que temos ouvido e lido sobre o interesse do SUS (Sistema Único de Saúde) e a enorme importância sanitária e assistencial deste serviço público, tendo a conta a realidade assistencial e sociológico-política do Brasil e a ação de sistemas de saúde idênticos implementados noutros países, somos levados a concluir que se trata de uma grande conquista política, não obstante as falhas e imperfeições que lhe possam ainda atribuir.
O facto de toda a gente, pobre, remediada ou rica, a partir de 1988, ter acesso a serviços de saúde poderá, futuramente, vir a representar um dos maiores ganhos de política social do Brasil, desde que se observem os necessários e constantes ajustamentos à realidade global do país. Segundo fontes sobre o assunto, o número de beneficiados passou de 30 milhões para 190 milhões. Por outro lado, o ter deixado de ser da responsabilidade do Poder Executivo Federal a gestão deste sistema, para passar a ficar sob a tutela dos diversos Estados e municípios, na verdade, instituições bem mais próximas e identificadas com a população e com os seus problemas sanitários, é também uma nota positiva.
A estrutura do SUS, assente no SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e noutras políticas nacionais de saúde extensivas e dirigidas a setores específicas da população, contemplando a Mulher, o Trabalhador, o Idoso e a Criança, através de programas alargados de vacinação, em termos globais tem tido um papel decisivo na mudança da saúde pública brasileira.
Em termos teóricos, o SUS é um projeto bem pensado, mas quando se passa à prática, quando os gestores e administradores nem sempre velam pela boa execução e aplicação das diversas ações e estratégias que este sistema implica e para as quais foi criado - garantir a tal equidade e universalidade de acesso a técnicos e técnicas diferenciados, quer no âmbito do diagnóstico quer no domínio terapêutico, possibilitar as condições mínimas em todos os pontos do Brasil para que o SUS possa funcionar (e a eletricidade é fundamental), em concordância com a universalidade que apregoa, alargando e disponibilizando a todos os cidadãos brasileiros os mesmos recursos médico-assistenciais, residam eles nas cidades ou nas zonas rurais, enquanto tal não acontecer o SUS é, no mínimo, um sistema claudicante. Mas se nas áreas mais recônditas do Brasil, o SUS tem e vai continuar a ter grandes dificuldades de aplicação com êxito, face às inúmeras carências básicas desses locais, em municípios localizados em Estados considerados de elevado grau de desenvolvimento, como é o caso de Santa Maria, a 5ª cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, as falhas do Sistema Único de Saúde não deixam margem para dúvidas. E, pelos vistos, não é por falta de estruturas sanitárias altamente equipadas ou de técnicos especializados em número suficiente, porque só estabelecimentos de saúde contam-se 127, estabelecimentos de apoio a diagnóstico e terapias são 84 e postos de saúde são 23. Apesar disso, nos últimos seis meses o número de queixas e protestos, muitos deles apresentados junto de entidades judiciárias, contam-se às centenas. As causas são inúmeras: atrasos de atendimento em consultas especializadas, grande morosidade a nível de estudos de diagnóstico imagiológico (ecografias, tomografias e ressonâncias), não acesso a medicamentos que constam como integrados na lista fornecida pelo próprio SUS, inacessibilidade a fórmulas e produtos dietéticos especiais destinados a crianças e adultos (com patologias de caráter alérgico ou intolerante), não previstos pela mesma lista, atraso considerável de tratamentos cirúrgicos e quimioterápicos…
A estrutura e a definição precisa, no papel e nas leis, do que deverá ser o SUS na sua ação global por todo o larguíssimo espaço brasileiro, tanto quanto sabemos, não nos oferece dúvidas. Nas cidades, com algumas ressalvas, como vimos mais acima, estas respostas assistenciais parecem corresponder às expectativas dos utentes: recursos farmacológicos, humanos e tecnológicos no âmbito do diagnóstico e da terapêutica diferenciados e em grande número. Mas, e no interior tão vasto do país?! Será que a população pode contar com a eficácia e prontidão de todos os recursos do SUS?
Portugal, no seguimento das grandes mudanças políticas geradas pela Revolução de Abril de 1974, pôde contar com um vasto sistema médico-assistencial a nível de cuidados de saúde pública e hospitalar, cobrindo todo o território nacional. A presença obrigatória dos médicos portugueses recém-formados junto das populações mais ou menos isoladas do país, pautou-se, durante várias décadas, por um saldo bastante positivo em relação a cuidados de saúde primária, a campanhas vacinação e saúde escolar, e ações de sensibilização e informação centradas sobre os mais diversos problemas sanitários, desde doenças endémicas, alimentação, controlo de diabetes e hipertensão, etc., mas as condições de prática clínica e os recursos de diagnóstico e farmacológicos disponíveis, como seria óbvio, nos locais mais periféricos e isolados, mesmo com toda a boa vontade dos clínicos, nunca poderiam comparar-se aquelas que as grandes ou mesmo pequenas urbes podiam e podem oferecer.
Será que no Brasil imenso, desde a Amazónia ao Rio Grande do Sul, o SUS consegue oferecer e prestar a todos os seus utentes iguais acessos e oportunidades aos recursos médico-assistenciais disponíveis? Mais vale ter um médico à mão do que não ter nenhum, dirão muitos. Mais vale ter um posto de saúde com poucas condições do que não ter nenhumas, dirão outros. Mas, ainda que haja postos de saúde ou hospitais montados no interior do país, a cargo dos respetivos municípios, cujos níveis de resposta possam ser satisfatórios, estará a grande maioria da classe médica interessada em prescindir das suas comodidades de vida na grande cidade, para se deslocar para o sertão ou para qualquer outra região recôndita e mais ou menos inóspita do Brasil? Estará o Governo brasileiro disposto a aliciar os seus clínicos e demais especialistas de saúde, não só médicos, mas também enfermeiros, técnicos e “atendentes”, com melhores condições salariais e já agora, que estamos numa de “bolsas” (a bolsa-copa foi a última), oferecendo “bolsas de interiorização”, por forma a garantir uma boa rotação de serviço obrigatório à periferia ou no interior, como aconteceu durante muito tempo em Portugal?
Confrontamo-nos, porém, como outra questão, que nos parece não de menor importância: o número de médicos brasileiros formados pela universidade federal (ou seja, aqueles que fizeram a sua aprendizagem à custa de dinheiros públicos), será em número suficiente para assegurar em todo o espaço brasileiro as necessidades de saúde da população ou é mesmo fundamental contratar profissionais de saúde no exterior, em Portugal, em Espanha e, particularmente, em Cuba?
Há quem discorde desta medida. E porquê? Porque teme que as populações, ainda em grande parte analfabetas, nomeadamente aquelas que residem no vastíssimo espaço amazónico, no Nordeste e em algumas regiões mais ocidentais e interiores do Brasil, pela sua humildade e simplicidade, possam ser mais facilmente catequizáveis pela filosofia política de marca marxista-leninista veiculada pelos cerca de seis mil médicos cubanos importados durante a presidência de Dilma Rousseff, na sequência dos recentes acordos estabelecidos com Cuba. Sobre esta pretensa invasão considerada por alguns analistas como perigosa, não venham os ditos médicos, todos eles “potenciais espiões comunistas”, a difundir e a imprimir com sucesso as suas ideias maquiavélicas em vez de se limitarem apenas ao exercício da “nobre arte”, diremos que o “comunismo” supostamente pregado pelos milhares de médicos cubanos não pegou em Angola nem pegou em Moçambique, onde exerce(ra)m medicina durante décadas, preenchendo os quadros orgânicos da saúde destes países cujas taxas de analfabetismo eram e são incomparavelmente maiores. As diferenças socioeconómicas entre os diversos estratos sociais são tremendas, mas os ventos da economia liberal ou neoliberal é que vão marcando os rumos da política. O comunismo, nem nos países que sempre foram o baluarte da sua génese e arquitetura subsiste. É ideologia que, nas poucas bolsas que o albergam, tende a embolorar, a volatilizar-se pela enorme e rápida pressão da sociedade global e comunicacional a que assistimos. Cremos, é, que os médicos cubanos, a quem são reconhecidas incontestáveis qualidades de formação profissional, habituados a viverem com racionamento de tudo, se sentirão bem mais felizes e realizados no Brasil do que na sua pátria. E se há alguém que corre o risco de sofrer uma rápida aculturação são os médicos cubanos e não os beneficiários do SUS. Estes, apenas correm o risco de terem médico, autóctone ou importado, mas não terem recursos auxiliares de diagnóstico, farmacológicos e terapêuticos suficientes. Compete ao Governo brasileiro, isso sim, disponibilizar os recursos humanos e tecnológicos suficientes para que todo aquele que queira e possa vir a exercer medicina nos locais mais isolados do país possibilite às populações, sob os seus cuidados, o melhor apoio médico-assistencial e com a maior dignidade possível.
O SUS, projetado como um grande “motor” da saúde pública brasileira, precisa ainda de muita afinação.
João Frada
Médico/Professor Universitário
Lisboa, 02.07.13
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