sábado, 1 de junho de 2019

DESABAFOS MUDOS

Tenho Saudades de desabafar, ainda que nada diga, ainda que ninguém me leia ou oiça. Ainda que a confusão de ideias, sentimentos e emoções sejam tantos que nenhuma espécie de catarse se concretize. Os desabafos são como as camisas. Em qualquer loja de roupa, correndo o risco, apesar de tudo, de se contrair sarna ou micoses fúngicas, ao longo do dia, não é raro contabilizar-se uma meia dúzia de clientes a experimentar uma mesma vestimenta. Sobretudo, quando o preço é convidativo, ou está em saldo. A uns, fica-lhe bem no comprimento, mas apertada nas mangas, a outros, bem no colarinho, mas demasiado justa nos ombros, a outros ainda, folgada no tronco, excelente nas mangas, todavia, demasiado estreita no pescoço. Há sempre algo que agrada e outro tanto que pode desagradar. Há, contudo, camisas, como desabafos, que não têm ponta por onde se lhe pegue, mesmo quando são de “marca e de bom corte”. Considerem os desabafos que se seguem como as ditas camisas e, aí, perceberão se vos transmitem, ou não, algum conforto, encorpando-os como vossos. Se nada vos transmitirem, em termos mensagísticos, considerem-nos apenas humildes ensaios pseudo-filosóficos ou meras dissertações sem conteúdo. Nada mais. As opções de cada um, medidas e devidamente acauteladas, quando se acautelam, com todas as consequências que elas representam, só cada um as entende…e o fardo que elas possam trazer ou acarretar só pesam mesmo nos ombros de quem as assume ou tem de assumir, por imposição, medo, obrigação ou conveniência, pragmática ou não…mas eternos flagelos, esses, só os suporta quem tem espírito de mártir ou resistência para tal. Não há suplício sem carrascos, e admitir eternas penas ou punições físicas ou psicológicas, ou ambas, por pecados cometidos ou supostas faltas ou factos nunca provados ou confessados, quando não mesmo impossíveis de provar, é alimentar sadismo e, nessa demonstração de fragilidade, sei lá se não um pouco masoquista, é também favorecer ou eternizar a violência e certificar que até as incertezas e improbabilidades podem vigorar e impor-se como certezas. O alívio que as palavras ternas, balsamizantes ou simples, como um simples olá, possam trazer, hoje, amanhã, daqui a meses ou a anos de distância…e o tempo, imparável, vai “rodando”…não nos parece que compense o sacrifício que a luta surda e silenciosa de eterna prisioneira do medo de gritar “Basta” exige, seja a quem for. Devemos lembrar aos outros, sobretudo àqueles que à nossa volta parecem viver surdos e cegos, que não podem esperar respeito e consideração, se não nos concederem igual tratamento…a não ser que não nos importemos de copiar a cruzada de Cristo, de oferecermos uma face a quem nos esbofeteou a outra. Não deveríamos nunca transformar o nosso silêncio num alforge de culpas que só nós sabemos carregar ou não na nossa consciência. Porque quem cala, consente e sofre, quantas vezes para além dos limites do razoável e tolerável. Nada se deve, nada se fica a dever,…quando, em consciência, não há noção de pecado, de traição, de atropelo a sentimentos, sobretudo, quando eles são sublimes. Não devemos ajoelhar, eternamente, perante ameaças ou sevícias que nos comprometem gravemente a nossa saúde física e psicológica, sem o mínimo de contestação firme e peremptória. É fundamental reencontrar algum equilíbrio, dentro de nós mesmos, repudiando, terminantemente, quaisquer pressões ou intimidações que nos anulem enquanto pessoas e seres emocionais. Não há palavras doces, nem afetos escritos ou ditos por ninguém que favoreçam ou preencham essa necessidade vital, esse equilíbrio, tão essencial ao nosso dia-a-dia. E, de resto, de uma forma ou de outra, ninguém é insubstituível. Não devemos alimentar, nem mesmo através de uma farsa diária, nem a nossas utopias nem as de ninguém. A vida real já é bastante complicada e cheia de sonhos por realizar... Há que não vergar perante chantagens cobardes e desumanas, porque ceder a tais aberrações e vícios, é assumir culpas e faltas, mesmo quando elas não existem ou se apagaram de vez na nossa memória, como atos passados ou nunca acontecidos. Acordar lembranças nostálgicas, sobretudo quando nos enternecem e nos conferem alguma força anímica, é positivo e salutar. É mesmo! … ainda que nos custe afirmá-lo, por receio, por insegurança, por opção ao silêncio. Na verdade, não deveríamos permitir que elas nos sejam roubadas ou se tornem pesadelos no nosso espírito. Recordemo-las o melhor que pudermos. Como corolário nada filosófico, para que todos entendam, em “língua pátria”, como só os lusos sabem dizer: Saudades! Sentimentos lixados! Roem-nos, a todos, por dentro, mas são elas que alimentam as nossas utopias, os nossos sonhos diários. "Calendas Semânticas 2000" João Frada